“Nada de mal poderá acontecer-lhe em Delparaíso”. Assim é publicitado “um dos condomínios privados mais seguros da Europa”, onde habitações de luxo são protegidas por múltiplas barreiras, das mais tradicionais – gradeamentos e um fosso – às que usam tecnologia moderníssima, sem esquecer as dezenas de câmaras de filmar. Porém, é óbvio que algum mal acabará sempre por acontecer, pois a vida não cessa de se desenrolar e a natureza humana é inexorável.
O narrador que o espanhol Juan del Val criou para nos conduzir por este microcosmo é uma espécie de cruzamento entre um Big Brother capaz de ler pensamentos e um entomologista dedicado à observação de uma colónia de insectos. O facto de o autor já ter desenvolvido trabalhos de realização e ser actualmente guionista de um programa de televisão – El Hormiguero – terá de certeza contribuído para a forte dimensão visual de “Delparaíso” (Planeta, 2022), não surpreendendo que a obra esteja em vias de ser adaptada ao pequeno ecrã pela HBO.
As histórias de uma miríade de personagens ligadas ao condomínio entrelaçam-se em pequenos capítulos, com o primeiro a deixar bem evidente a classe social alta a que pertencem os habitantes. Alguns correspondem ao que esperaríamos encontrar – por exemplo, o dono de um escritório de advogados e um ex-futebolista, com as respectivas esposas e filhos –, mas outros são mais peculiares, como uma antiga amante real envelhecida e um detective privado de elite. As classes sociais mais baixas são representadas através dos seguranças, de um bancário, dos operários romenos da construção civil, das babysitters e das empregadas domésticas. O mosaico humano que daqui resulta transcende o moralismo simplista que afirma que os ricos também sofrem e os pobres podem ser felizes, mesmo quando corrobora essas afirmações.
Desde o início são insinuados segredos que prendem a atenção do leitor. “Atrás da porta de cada casa há um universo que escapa àqueles que ficam de fora. E dentro de cada uma destas casas, divisões desconhecidas para os que ficam na ombreira da porta, e dentro das divisões, pessoas que também são um mistério”. Há um roubo, um suicídio e um assassinato. Há jovens e adultos que tentam descobrir-se, problemas mentais, inseguranças, homossexualidades recalcadas ou assumidas, infidelidades e uma profusão de cenas de sexo que ajudam a caracterizar as personagens, bem como as relações entre elas. Há quem seja realmente feliz, encontrando na vida coisas maravilhosas que “não são transcendentes, são simplesmente divertidas, agradáveis e emocionantes”. Há pessoas que mudam e outras que preferem não o fazer, pois “a liberdade é um abismo”, enquanto “a segurança é um lugar com chão firme”.
Numa piscadela de olho ao leitor, Juan del Val resume a própria obra através de uma personagem secundária, que explica de que trata o guião para um filme que está a escrever: “Trata de muitas coisas. Vidas que se cruzam, pessoas que não são aquilo que parecem, de aparências. De um lugar idílico que não o é assim tanto”.
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