Como seríamos sem as nossas memórias? Sejam fonte de alegria ou de tristeza, elas determinam, em grande medida, a nossa maneira de ver o mundo. Perdê-las é sofrer uma ferida identitária. Partilhá-las é construir pontes entre nós e os outros, o que pode constituir um empreendimento arriscado, uma vez que as pontes tanto servem para unir como para facilitar ataques. É por essa razão que não podemos deixar de apreciar a dose de coragem que a escrita de uma autobiografia exige.
Em “De maneira que é claro…” (Porto Editora, 2021), a coragem encontra-se não só no conteúdo, mas também na forma como Mário de Carvalho desafia o cânone que as autobiografias habitualmente seguem, resistindo a atribuir tal classificação a este seu livro. Não estamos perante uma narrativa cronologicamente ordenada, pontuada por retóricas, epifanias, descrições de amores e desamores, ajustes de contas ou revelações chocantes, ainda que a vida do autor seja rica em acontecimentos: nascido em 1944, envolveu-se na luta contra a ditadura quando ainda era estudante de Direito, militou no Partido Comunista, foi condenado a dois anos de prisão e teve de se exilar após cumprir a maior parte da pena; de regresso a Portugal, desvinculou-se do partido e desenvolveu uma carreira na advocacia, em paralelo com a literatura, tendo praticado diversos géneros literários e recebido múltiplos prémios, chegando até a ser condecorado pelo Presidente da República em Novembro do ano passado. Uma história assim poderia servir de base a mais de um romance, mas o autor não parece disposto a romantizar o passado, apresentando, em alternativa, um conjunto de 96 brevíssimos capítulos, cada um correspondendo a uma recordação, com um limite de palavras que impôs a si próprio.
Tal sobriedade não implica que o livro seja desprovido de emoção. A vivacidade da escrita transmite tanto o entusiasmo infantil de aprender a nadar, como o da publicação do primeiro livro, já na idade adulta. Graças a ela, acompanhamos a perda do irmão mais novo, a entrada no liceu, os percursos pela Lisboa de outrora, a revolta causada pela prisão do pai, o desenvolvimento da consciência política e as actividades clandestinas, com os seus pseudónimos, senhas e contra-senhas. “Omissões não faltarão”, assume o autor, insinuando que poderá haver outra compilação de memórias. Deste volume, o que transparece, acima de tudo o resto, é um desejo sincero de aproximação aos leitores: “Oxalá nos encontremos, caro leitor. No fundo, no fundo – mesmo disfarçando –, é a si que eu busco”.
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