Acompanhemos Coro, a personagem que a madrilena Pilar Adón criou em “De Bestas e Aves”, (D. Quixote, 2024), uma artista plástica que resolve sair de casa, para espairecer, sem telemóvel e a ninguém dizendo para onde vai. Desorienta-se por estradas secundárias e escuras, não conseguindo fazer inversão de macha até que, praticamente já sem gasolina, se depara com uma propriedade cercada, onde procura ajuda. Encontra um grupo de mulheres e de animais, que a acolhem, mas que protelam dar-lhe o combustível que precisa para regressar a casa. Persistem em mostrar-lhe que está em segurança, que deve descansar e que pode viver ali, com elas e em comunhão com a natureza, renunciando aos compromissos e às pressões, desligando-se do que, no exterior, a fazia sofrer.
Coro chegara a Betânia, um território que não se percebe bem em que dimensão se situa, um espaço de transição e de aparente irrealidade, de complacência pela diferença, de encontro com os fantasmas, de acerto com a vida ou de definitiva inversão do sentido da mesma. Um local onde não escolhera estar, mas onde acaba por sentir que poderá permanecer e recompor-se dos traumas que a têm aguilhoado, afastar-se do imperativo de permanecer em forma e em harmonia, ouvir o apelo do seu interior que há muito implora desistência e libertação.
Em Betânia, onde continuava ainda assim a não querer permanecer, começava a questionar-se se não estaria a viver pela primeira vez uma vida em comunidade e em verdadeira simbiose. Tudo parecia integrar o mesmo impulso vital, numa inusitada ligação com a natureza, ainda que tivesse dificuldade em perceber a atitude das outras mulheres, o seu desligamento relativamente ao mundo lá fora, a sua união, os motivos pelos quais estavam ali e porque tanto se preocupavam em preservar-se quando pouco ou nada parecia aproximá-las.
A experiência de Coro obriga-a ao confronto entre a vontade individual e a pertença a um grupo. Desde logo a hipótese de, lá fora, ninguém estar à sua procura, de se perceber prescindível num mundo que continuaria sem ela, como se tivesse evaporado ou nunca existido. Sempre lhe haviam dito que os factos não importavam muito, mas sim a forma como os encarava. Mas para ela a sobrevivência sempre acarretara muito esforço, fora arrítmica, composta por segmentos que não se uniam, sentindo-se como um cão com uma corda com latas atada à cauda, um boi que puxa uma carroça ou uma besta atrelada a um jugo.
Pilar Adón tem um estilo único de escrita, poético, pormenorizado, generoso, profundamente activador do leitor, fazendo coexistir uma criatividade única com a expressão das emoções e projecções muito concretas e simples, como o medo e o prazer de se estar só, de encontramos prazer e sentido na simplicidade e na riqueza da natureza, que nos disponibiliza tudo o que precisamos – assim estejamos despertos para tal. Suspeita-se que facilmente os diálogos de Coro passarão para o mundo dos leitores.
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