Lampedusa é o ponto mais a sul da Europa. Embora esta pequena ilha Siciliana tenha sido, ao longo dos tempos, um importante porto de abrigo para marinheiros e viajantes, foi no início do presente século que Lampedusa se tornou um “símbolo no imaginário global”. Há cerca de 20 anos, um vórtice mediático atingiu a ilha após dezenas de barcos de borracha com milhares de africanos a bordo terem dado à costa. Hoje, Lampedusa é famosa por acolher “mais estrangeiros que residentes”.
“O movimento, a deslocação, a migração, fazem parte da vida do próprio planeta”, declara o dramaturgo italiano Davide Enia nas suas “Notas sobre um Naufrágio” (Dom Quixote, 2021). Em plena era dos dados, temos uma vaga ideia do número de migrantes que desembarcam anualmente em Lampedusa, das pessoas resgatadas e das vidas perdidas no mar. Talvez olhemos para estes números de um pedestal e/ou talvez nos comovamos com as causas de quem desafia a morte para tentar pisar solo europeu. O que é certo é que não fazemos ideia do que se realmente acontece nas temíveis travessias do Mediterrâneo. Partindo deste pressuposto, Enia resolveu investigar o epicentro das vagas de migração de africanos para a Europa e constatou que aquelas “pessoas não eram abstracções nem títulos de jornais, eram mesmo seres humanos”.
A história de cada migrante começa com uma necessidade imperativa de fugir à miséria ou à morte certa. À saída de África, homens, mulheres e crianças sofrem abusos físicos e sexuais às mãos dos traficantes de homens, que os amontoam em barcos pneumáticos e os entregam à própria sorte. A quem vencer os enjoos, a desnutrição, desidratação e o risco de afogamento é dada uma oportunidade para “renascer” em terra firme.
Segundo o autor, só se percebe “a escala deste acontecimento quando se assiste a um desembarque”, daí recorrer à observação in loco e aos testemunhos dos protagonistas da travessia para contar a história recente de uma ilha no Mediterrâneo onde coexistem “o temor e a curiosidade, a desconfiança e a compaixão“.
Neste livro poético e comovente, Davide Enia consegue a proeza de levar a narrativa a bom porto apesar das tribulações, enjoos e incertezas. “Notas Sobre Um Naufrágio” constrói pontes entre dois continentes e reúne, na mesma História, os desígnios de milhões de pessoas, deixando transparecer a ideia de que lampedusanos e migrantes, Europeus e Africanos, nós e eles, estamos todos no mesmo barco.
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