Desde 2009 que a Fundação Francisco Manuel dos Santos se dedica ao estudo e debate de grandes temas nacionais, produzindo conhecimento e reflexão fora dos círculos restritos da cátedra e de algum corporativismo científico. Entre estudos, ensaios, uma revista e publicações de outro tipo, Retratos é uma colecção que procura aproximar os leitores do país real. “Portugal contado e vivido, narrado por quem o viu – e vê – de perto.” “Culatra” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020) – Uma ilha com gente dentro – é a décima publicação do género, precedida nesse mesmo ano de lançamentos em torno de temas relacionados com a dependência, as prisões, a maternidade, a demografia, o envelhecimento e o isolamento.
Ana Cristina Leonardo, há muito ligada ao jornalismo e à edição, cronista actual no Expresso, com trabalhos publicados em literatura infantil e romance, revela-se em “Culatra” uma observadora, investigadora e relatora exímia, fiel à história e sensível à actualidade. Consegue falar de uma comunidade sem cair em lugares-comuns ou estereótipos, destacando a essência de gente que, ao longo de séculos – e, mais intensamente nas últimas décadas -, foi capaz de resistir a determinismos políticos e discursos oficiais, mesclados por preocupações ambientais e estratégias turísticas.
A sul do Sul, coordenadas: 36° 59′ 9.22″ N 7° 50′ 36.94″ W, vive gente em diálogo com a natureza e resistente à pressão turística. Pertencente ao concelho de Faro, a ilha da Culatra encontra-se em frente à cidade de Olhão e faz parte do conjunto de Ilhas barreiras que compõem a Ria Formosa. Com perto de 1000 habitantes, na sua maioria dedicados à vida piscatória e ao turismo, é hoje uma réstia de identidade entre algarvios. Desembarcar na ilha é uma oportunidade de nos desprovermos de materialidade e deixarmo-nos levar pelo ritmo da vida, a dos homens e a dos mares, na hora do acordar e do deitar, no que comer e no que fazer. Não há carros na ilha, mas há tudo aquilo que a tecnologia e a força de vontade de cada um aportou, numa mixórdia de formas de viver deliciosa, entre os que se rodeiam de todas as comodidades e aqueles que mantêm o ritmo da natureza como bussola. Só pode haver um convite a quem chega: respeito. Respeito pelo ritmo e por aquilo que encontram; despojo de pressas e alaridos. Passará a ser o mar, as marés e as apanhas a determinar a tristeza e a alegria, a abundância e carência, a disposição ou o recato desta gente.
“O mundo é grande e o tempo o seu mistério maior.”
Imagine-se que um areal com cerca de 7Km de extensão e uma largura que não vai muito além dos 900m, no século XVI, foi refúgio e degredo de gente assolada pela peste, visitada pelo desejado el rei D. Sebastião. Num salto de gigante, já em pleno século XX, os culatrenses foram autores do primeiro boicote eleitoral, verdadeiro grito de Ipiranga contra o ostracismo a que se encontram votados pelos poderes políticos e administrativos nacionais e regionais – o dia da revolta dos ilhéus.
Ana Cristina Leonardo realiza um trabalho exemplar de reflexão entre o casamento da modernidade e da tradição, da conservação e do progresso, reconhecendo que o isolamento pode ser o preço a pagar pela preservação.
Dos culatrenses, povo “anfíbio endurecido pela condição de ilhéus”, fica um retrato de riqueza. Não tanto a material, mas a riqueza histórica, cultural e social – o seu humor, a sua irreverência, o jogo de cintura e o instinto de sobrevivência.
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