O dia em que Eugénia assiste à cremação do seu companheiro Artur é o primeiro dia do resto da sua vida. Anestesiada pela dor, passa pelo funeral como um fantasma, enquanto familiares e amigos lhe transmitem as suas condolências e partilham consigo os típicos lugares-comuns dos funerais – aquelas frases feitas com que os vivos, perante a inevitabilidade da morte, reconhecem o absurdo da existência.
Chegada a casa, finalmente a sós com os seus pensamentos, sente-se trespassada por sentimentos contraditórios de perda e alívio. “Livrei-me dele. Nada vale o que é demais”, repete para si mesma, como um mantra. Este é o ponto de partida para uma viagem ao passado de Eugénia, personagem central do romance, desde a adolescência conturbada até ao momento em que se cruza com Artur, convidando o leitor a encontrar nos episódios mais marcantes da sua vida pistas para decifrar aquela relação tão obsessiva.
Esta é a premissa de “Coração Mais Que Perfeito” (Quetzal, 2017), de Sérgio Godinho, ele que, como um autêntico homem dos sete instrumentos, já nos havia dado canções, poesia, contos, crónicas, peças de teatro e guiões de cinema, e que agora se estreia no romance.
Eugénia pertence a uma linhagem de anti-heroínas em que a obra de Sérgio Godinho é fértil, reconhecendo-se nela traços da rebelde Etelvina ou da maltratada Rita. Filha de pai ausente e mãe distante, educada pela tia e abusada pelo tio, ocasionalmente foragida da escola, a vida de Eugénia não parece ter um rumo até que decide emigrar com a mãe para França, onde se envolve com um rapaz e engravida. Após a morte trágica deste, resolve fazer um aborto clandestino, que corre mal deixando-a incapaz de ter filhos. Uns anos depois encontramo-la regressada a Portugal, trabalhando como caixa num supermercado e prostituindo-se ocasionalmente, não tanto por necessidade mas para aceder aos bens de consumo que deseja. Quando se resolve a começar de novo noutra cidade, trava conhecimento com Artur, actor de teatro de moderado sucesso, relação que de certa forma a vai redimir, até que uma outra tragédia – a doença mental de Artur que culmina finalmente no suicídio deste – vem marcar a sua vida.
Apesar de a sua vida ser um aparente rol de desgraças, Eugénia não é uma personagem passiva – confronta o tio que abusa dela, resolve interromper a sua gravidez contra a moral dominante, vende o seu corpo não apenas por necessidade mas por desejo –, antes faz uso da liberdade que tem sem cair na auto-comiseração. O problema é que as diferentes fases da vida de Eugénia nem sempre parecem bem cosidas entre si, assemelhando-se a uma sucessão de vinhetas onde se sente a falta de um fio condutor. Tem-se a sensação que Sérgio Godinho, mestre do tempo curto da canção, do poema e do conto, ainda não domina completamente o tempo longo do romance. Depois, a crueza das situações – onde avultam as referências sexuais – e a superficialidade de caracterização das personagens, com algumas passagens inverosímeis à mistura (as referências a telemóveis e internet no passado de Eugénia, a sugestão de um encontro sexual com o filho de Artur, a amiga de infância que se torna escritora), criam por vezes um sentimento de desconforto no leitor e uma certa dificuldade em empatizar com as personagens.
Que Sérgio Godinho é um dos mais talentosos escritores de canções portugueses – no duplo sentido do domínio da palavra e da música, porque isto anda tudo ligado –, não há sombra de dúvidas. Como romancista, “Coração Mais Que Perfeito” tem algumas fragilidades e não será a estreia mais auspiciosa. Contudo, acreditamos com um brilhozinho nos olhos que, se o romance de hoje nos soube a pouco, os de amanhã saberão a muito mais.
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