Quase um século após o primeiro contacto entre japoneses e portugueses, em 1543, na ilha de Tanegashima, as relações entre os dois países tinham azedado significativamente, por várias razões. Entre elas, contavam-se as consequências sociais e políticas da rápida disseminação do cristianismo – com os seus ensinamentos de que só há um Senhor, que “manda nos céus, na Terra e em todos os mares” –, visto como uma ameaça ao poder do xogun. Em 1637, mais de duas décadas após a nova religião ter sido proscrita, inicia-se uma revolta na cidade de Shimabara, reunindo cristãos, camponeses espoliados por políticas fiscais injustas, e samurais renegados chamados ronins – grupos estes que, por vezes, se sobrepõem.
“Coração-Castelo” (Oficina do Livro, 2024), de Raquel Ochoa, romance finalista do Prémio Leya 2023, transporta-nos para o cerne dessa revolta, no castelo de Hara, onde se refugiam cerca de 35 mil pessoas. Situado numa península que quase parece uma ilha, com mar de um lado e pântano do outro, esse último reduto em ruínas, reconstruído pelos revoltosos, torna-se, tal como sugerido pelo significado do seu nome japonês, “o centro de tudo, o foco e a origem do movimento”, pulsante como um coração, sob a tutela de um líder carismático de apenas 16 anos, considerado um prodígio desde criança e baptizado com o nome Jerónimo.
A cuidada reconstituição histórica conjuga-se com um leque diversificado de personagens, das quais se destaca uma jovem viúva chamada Jana, que sabe usar armas, esconde um segredo, e tenta proteger o filho de seis anos. A relutância com que é arrastada para a rebelião, perguntando a si mesma “quanto da fuga é ainda a liberdade“, só é comparável àquela com que se vê a partilhar uma casa com o ronin Haru e a família deste. O relacionamento entre Jana e Haru, repleto de emoções novas e contraditórias para ambos, é um dos principais eixos narrativos, mas há mais paixões e intrigas. A dada altura, Clarimundo, um missionário jesuíta português, formará com eles um triângulo amoroso, além de despertar o amor da irmã de Haru e a animosidade de um clérigo espanhol de outra ordem religiosa.
Do outro lado do combate, encontra-se o xogun cujo avô assinou o édito de expulsão dos cristãos, convencido que “o cristianismo perverte a sociedade” e “os ensinamentos dos bárbaros são irracionais“. Ao seu dispor, estão militares rivais sedentos de glória e ansiosos por esmagar a revolta em curso, aos quais se juntam, a contragosto, forças de artilharia dos Países Baixos, que mesmo com uma cooperação decepcionante conseguem a recompensa do monopólio do comércio europeu com o Japão.
Apesar da centralidade do tema da perseguição religiosa, a narrativa não resvala para retóricas de apologia de uma fé em detrimento de outra. Em vez disso, a autora oferece-nos uma história intensa de paixões humanas num ambiente de cerco e de luta pela liberdade contra múltiplas formas de tirania.
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