“…uma obra-prima, um daqueles livros indecifráveis que ficarão com o leitor no compartimento secreto da sua biblioteca pessoal e ao qual voltará, certamente, para mais do que uma releitura”. Estas palavras foram por aqui dedicadas, no longínquo ano de 2015, a “Eu Confesso”, livro que parecia ter conseguido condensar, em pouco mais de setecentas páginas, todo o mal que o Homem tem vindo a fazer durante vários séculos. Mais tarde, em 2019, chegou-nos às mãos “Quando a Penumbra Vem”, “um cardápio sanguinário de coleccionadores de arte, pastores de ovelhas, assassinos contratados ou bullies por conta própria, todos eles sem redenção possível – e com a entrada no Paraíso protegida por sete chaves muito difíceis de encontrar”. Já este ano – edição original em 2021 -, novamente com o selo da Tinta da China, aterrou mais um enigmático objecto assinado pelo catalão Jaume Cabré, intitulado “Consumidos Pelo Fogo” (Tinta da China, 2022).
Trata-se de um romance com tanto de breve como de surreal, protagonizado por uma personagem que vai buscar o seu nome a um dos romances maiores da história da literatura: Ismael. Um homem que teve uma infância traumática, com o pai a considerar o seu nascimento, na noite mais fria do ano, a causa da morte da mãe – mesmo que esta só deixasse o planeta nove anos depois.
Já na vida adulta, a superação parece chegar quando se torna professor de línguas e literatura, mas um despedimento por ter lido na sala de aula um poema em catalão – isto quando a literatura catalã estava proibida – acaba por atirá-lo para o despedimento. É por essa altura que, no seu caminho, se atravessa um antigo aluno, e uma boleia para um que trabalho acabará numa cama de hospital, lugar onde passará a ser designado por Cinquenta e Sete.
É mais ou menos por esta altura que Cabré funde o sonho com a realidade, construindo um pequeno zoo feito de bodalhos e bodalhinhos – pequenos javalis que, como numa fábula à volta de uma perda de memória selectiva, levarão Ismael a passear com todos os seus fantasmas, sempre com a literatura por perto. O leitor, esse, ficará provavelmente tão perplexo quanto aquela “voz serena surgida da zona mais escura do Terreno”, perguntando-se se “Consumidos Pelo Fogo” será “uma morte, um estufado ou simplesmente um conto”. O mistério persistirá, convidando a uma lenta releitura.
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