“Agora que me vou retirar, tenho pensado de novo o que significa para mim ser professora. Não entrei para a profissão pelas razões habituais – por ter tido um professor maravilhoso que mudou a minha vida, ou algo assim. Creio que se pode dizer que fui professora por ter crescido numa família pobre. Desde pequena que os meus pais me diziam que nunca teriam dinheiro para me enviar para a universidade – e o que também seria um desperdício, por ser rapariga –, mas creio que foi isso que me fez querer ainda mais ir para lá.”
A vingança é uma espécie de justiça selvagem, tal como afirmou Francis Bacon nos seus ensaios, e não há verdade tão fugaz e certamente aplicável ao enredo destas “Confissões” (Suma de Letras, 2016) da escritora japonesa Kanae Minato. Vingar uma ferida ou um ataque pode devastar a própria casa, as paredes bem construídas, de quem executa a barbárie. Através de meras palavras ou de comportamentos fatais, tudo pode desmoronar em segundos, mas até onde vão os limites do ser humano que nada tem a perder? Qual o alcance da crueldade de uma pessoa ferida, a contra-atacar a maldade que lhe foi transmitida?
Vinganças cruas e frias, executadas a crianças e com consequências fatais, não saem da cabeça. Perpetuar o destino de uma criança, ciente da morte que cometeu a uma outra, é uma situação que pode levantar dezenas de questões aos mais cépticos. Com uma dose de criatividade e força de vontade, é uma situação capaz de ferver a imaginação de bons contadores de histórias e ganhar vida sob a forma de livros, guiões ou canções. Uma dose de irrealidade – colocada na ficção para assegurar os corações mais frágeis – associada a vinganças tão violentas é o cartão-de-visita destas “Confissões”. Ao contrário dos mais bem-sucedidos thrillers dos últimos tempos, como é o caso do mais recente “A Rapariga no Comboio” ou “Em Parte Incerta”, Kanae Minato dá a conhecer toda a tragédia que assombra a sua protagonista, Yuko Moriguchi, sem deixar o leitor em suspense. Como um mergulho em água gelada, toda a verdade sobre a sua vingança é contada nas primeiras páginas.
De casamento marcado e com uma filha a caminho, acaba por ver os seus planos serem destruídos pelo próprio noivo a partir do momento em que lhe confessa ter sido infectado com o vírus da SIDA, uma das doenças mais proibidas e, consequentemente, tabu no Japão. Resta-lhe a filha Manami e a sua carreira no ensino, até ao momento em que dois dos seus alunos assassinam a sua única filha. Encontrada morta numa piscina abandonada da escola onde lecciona, tudo indica que se tratou de um acidente. Mas as aparências iludem os olhos mais puros e, na busca pela verdade, Yuko acaba por descobrir que foram dois dos seus alunos que assassinaram a sua filha, começando a planear a sua vingança, confessada à turma inteira e ao leitor nas primeiras páginas do livro. As consequências desta vingança são contadas por quatro vozes, envolvidas na vida dos rapazes envolvidos na morte de uma criança.
Ir de encontro à frieza da tragédia num primeiro impacto é a maior atracção desta estreia literária de Kanae Minato. Todos os pedaços cortantes, resultantes deste choque, são apanhados pelo leitor ao longo do livro. Estas “Confissões” vão contra a maré dos grandes livros de mistério, em que o autor tem o trabalho herculano de deixar o seu grande vilão longe de todos os olhares, tentando explorar, com acontecimentos-chave, a frieza do ser humano. No egoísmo infantil, em que uma criança tenta ser melhor do que o colega e não olha a meios para o conseguir – mesmo que seja necessário tirar a vida de uma criança pelo caminho –, é justo colocá-la na justiça do Estado ou dos próprios colegas? Ou é necessário chegar a um consenso, de forma a levar a criança para o bom caminho?
As quatro personagens do livro vão contando o que aconteceu a seguir ao assassinato de Manami, até ao êxtase final. Em cima da mesa é discutida a educação das crianças – uma reflexão que vai para além do Japão –, a consequência da solidão em cada pessoa ou o amor doente de uma mãe por um filho, entre tantos outros. Um verdadeiro thriller choca genuinamente e provoca a reflexão no leitor: características que têm faltada à maioria das obras do género, em que a história se resume à procura por culpados. “Confissões” pode ser apontado como o “Em Parte Incerta” japonês ou qualquer outra história do género, mas conseguiu conquistar o seu próprio lugar na literatura como uma das obras mais surpreendentes dos últimos tempos.
Sem Comentários