A surpresa – ou, melhor, o entusiasmo – surge, desde logo, no estranho índice servido em “Confiança” (Livros do Brasil, 2023): 4 grandes capítulos, cada um deles assinado por um diferente autor – enenhum deles pela caneta do argentino Hernán Díaz, autor deste tremendo romance.
Vencedor dos Prémios Booker – ex-aequo com “Demon Copperhead”, de Barbara Kingsolver – e Kirkus em 2022, “Confiança” é um romance ambicioso, com uma estrutura fora do comum – cada capítulo é escrito num diferente estilo literário – e que tem a capacidade de surpreender o leitor, à medida que vai conhecendo as vidas de Harold Vanner, Andrew Bevel, Ida Partenza e Mildred Bevel.
Obrigações, o primeiro andamento deste Quarteto, dá-nos a conhecer Benjamnin Rask e a sua impossibilidade – a única – de ter uma ascensão heróica, e para quem o tempo acabou por se transformar numa irritação constante. Era “um atleta inapto, um frequentador de clubes apático, um bebedor desinteressado, um jogador indiferente, um amante morno” que, apesar de dever a sua fortuna ao tabaco, não fumava. Apenas um dos muitos apetites que recusava, talvez por ser um tipo clínico, pouco dado a emoções, uma espécie de psicopata capitalista, fascinado pelo mantra “capital que gera capital que gera capital” e que, a dado momento, embarcará numa relação sentimental com Helen Rask, que combina o amor com a distância.
A Minha Vida é narrado, na primeira pessoa, por Andrew Bevel: “Muitos conhecem o meu nome, alguns os meus actos, poucos a minha vida. Isto nunca me preocupou muito”. Marido de Mildred, propõe limitar a sua história a personagens que encontrou entre a evolução da finança americana e o seu passado familiar, apresentando pelo caminho um pensamento que atravessa toda esta odisseia capitalista: “O cavalheiro de hoje é o arrivista de ontem. Mas por trás destas personagens mutantes há uma presença constante: o financeiro”. Foi durante o pânico de 1907 que Andrew Bevel viu a sua chance, acabando por enriquecer desatando “o nó em que se juntam todos os fios dispersos da existência humana” – que, para ele, é simplesmente o negócio.
É neste segundo andamento que Hernán Díaz começa a trocar seriamente as voltas ao leitor, publicando, entre o desenho de uma genealogia familiar, anotações que parecem fazer deste caderno de Bevel um esboço para um texto que está ainda longe de ser definitivo.
Memórias Relembradas tem como protagonista uma narradora de 70 anos, que começa por recordar a abertura da Bevel House, no ano de 1981, agora transformada em museu. Uma casa que pertencia a Andrew e Mildred Bevel, e que esta voz conhecia bem apesar de uma relação distante: “Em tempos trabalhei nesta casa. Mas nunca usei a porta proncipal. Entrei sempre pela porta de serviço”. Tudo se irá cozer neste terceiro andamento – o Quarto será uma adenda poética -, numa biografia a uma só voz onde se comete a proeza de dobrar e alinhar a realidade.
A América que Hernán Díaz descreve é uma América do passado mas que constrói pontes com o presente, atravessada em todos os momentos pela vertigem capitalista que, aqui, surge interligada através de peças narrativas que cabe ao leitor montar, qual detective dos puzzles literários. Há, a alimentar este Quarteto, um romance dentro do romance, uma autobiografia, memórias dispersas e um diário poético, tudo para construir um grande romance sobre a obsessão pelo dinheiro que tem alimentado a ideia do sonho americano. Um dos mais engenhosos romances publicados em Portugal em 2023.
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