Tudo em volta de Robert Walser (1878-1956), escritor suíço de expressão alemã, tende para o enigma. Seja pela sua biografia, que inclui vinte anos de internamento num asilo psiquiátrico, ou pela obra, feita de miniaturas – fotografias sob a forma de microcontos – onde reina a ironia e o sarcasmo, bem como uma curiosa e atenta observação das pequenas-grandes coisas.
“Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos” (Assírio & Alvim, 2023), breve colectânea de “brevíssimos textos sobre quase nada” – como se pode ler no sub-título -, chega-nos em mais uma belíssima edição da colecção Gato Maltês, acompanhada de ilustrações sacadas ao mundo digital que lhe acabam por emprestar um certo ar vintage.
Atente-se, como exemplo, neste fragmento do “Discurso a um Botão”, um dos mais deliciosos textos curtos desta colectânea, entre o auto-retrato e recados vários disparados em múltiplas direcções: “Tu, que durante todos os teus longos e pacientes anos de serviço jamais te colocaste em primeiro plano para assim surgir a uma luz vantajosa e engraçada ou produzir algum efeito de luz ofuscante e chamativo; tu, que sempre permaneceste na mais imperceptível discrição com uma modéstia comovente e encantadora, impossível de ser louvada o suficiente, praticando a tua querida e bela virtude num estado de perfeito contentamento. (…) Sorris, meu caro, e reparo que já aparentas estar um pouco usado e esgotado, meu velho! Tu, ó absolutamente formidável! Deverias servir de exemplo a todos aqueles que por pura dependência se viciam em reiterados aplausos, desejando morrer e afundando-se em dor, desgosto e mágoa, se não forem constantemente acariciados, afagados e mimados pela boa-vontade e pela elevada consideração de todos. Não fazes grande alarido de ti próprio, és apenas – ou pelo menos assim o aparentas – o propósito da tua vida, consagrando-te inteiramente ao silencioso cumprimento do teu dever”.
Há, nesta viagem que reúne textos escritos entre 1901 e 1932, uma homenagem aos objectos que enfrentam a voracidade implacável do tempo, um hino à silenciosa resistência, histórias que nascem dos lugares mais improváveis, mas que estão mesmo aqui ao nosso lado. Uma curta e deliciosa série de enigmas Walserianos com selecção, tradução e prefácio de Ricardo Gil Soeiro.
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