Na literatura, de Eça a George R.R. Martin, de Mario Puzo a Jonathan Franzen, muitos são aqueles que se dedicaram – e dedicam – a esmiuçar as ligações nervosas existentes numa família, sejam os seus segredos, dinâmicas, recalcamentos, assuntos por resolver ou contas por ajustar.
Considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, Luís Landero mergulhou também na vida turbulenta de uma família, numa história que tem, como figura central, um familiar de certa forma em segundo grau, mas que acaba por ser a primeira linha de defesa contra um furacão de proporções épicas.
O octogésimo aniversário da matriarca da família aproxima-se e Gabriel, o filho, decide juntar toda a família para um jantar de celebração – família que não se reúne há uma série de anos. Gabriel é o menino da mamã, um tipo céptico e estóico, que em tempos foi de entre a irmandade o eleito para ir estudar para Londres, ele que não sabia falar a língua; Sonia teve os seus sonhos arrancados pela raiz muito cedo, obrigada a trabalhar na retrosaria da mãe aos 14 e empurrada para um casamento de conveniência e sem amor aos 15; quanto a Andrea, fez uma cena de todo o tamanho num jantar de família dez anos antes, tendo já tentado o suicídio – é ela o foco mais instável de todo este frágil castelo de cartas.
A manter o equilíbrio familiar está Aurora, a mulher de Gabriel, a quem todos contam, quase sempre com rancor, os seus segredos, sejam eles sobre traumas, casamentos forçados ou o fim precoce da criancice. É ela quem vai cozendo esta manta de retalhos familiares, desvendando aos poucos o campo minado construído ao longo de décadas por uma mãe que teve sempre o poder de controlar a prole como marionetas.
Tal como Thomas Vinterberg fez na sua inesquecível Festa, “Chuva Miúda” (Porto Editora, 2020) vai servindo prato atrás de prato, numa narrativa feita de sobreposições que começa por uma entrada levezinha para, sem qualquer aviso, terminar o repasto com um digestivo maléfico envolto em chamas.
É surpreendente a forma como Landero pega na dinâmica familiar para desenhar um livro que é, também, sobre a memória individual e colectiva, e de como um mesmo momento pode dar origem a histórias e inquietações bem diferentes. Começamos devagar, em espaço aberto, e de repente damos connosco atirados para dentro de um labirinto, onde somos atacados sem piedade por um minotauro enraivecido que nos golpeia a alma sem piedade, atento ao lento despertar da loucura.
Uma tragédia com um twist a la Dostoievski que olha com fel para a inevitável condição humana: “viver um sonho, ser-se escravo desse sonho, do qual só nos são concedidos os despojos e a dignidade problemática de umas ruínas“. Excepcional.
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