Por vezes esquecemo-nos que o deus da música popular brasileira, Chico Buarque, é também um ser humano e que, tal como nós, comuns mortais, não caminha para novo. Em paralelo com uma fecunda carreira musical, Francisco Buarque de Hollanda tem escrito romances, poemas, livros infantis, peças de teatro e filmes. Aos 77 anos, Chico Buarque publica o seu primeiro volume de contos: “Anos de Chumbo e outros contos” (Companhia das Letras, 2021).
Concentremo-nos na obra escrita do autor ou, se quisermos, no Chico prosador. Nestas curtas narrativas, e em conformidade com o resto do seu repertório literário, Buarque alterna entre a primeira e a terceira pessoa e aborda a perversidade de uma sociedade à beira da ruína, ao passo que narra as crónicas de indivíduos alienados pela mesma, sempre com o Rio de Janeiro como pano de fundo.
São ao todo 8 contos, onde cabem malandros, artistas, indigentes e alguns dos elementos da identidade nacional brasileira, como o samba, praia, futebol, candomblé, não esquecendo o omnipresente fosso social e a eterna violência policial.
Tal como uma considerável parte do cancioneiro de Chico Buarque, a maioria destes contos alude ao universo infanto-juvenil. No entanto, “Anos de Chumbo e outros contos” não é propriamente uma obra nostálgica, ou não fosse o tempo da ditadura militar brasileira (para o qual nos remete o título do livro) uma das épocas mais negras da história recente do Brasil.
O espaço temporal dos contos é variado: a linha cronológica de “Cida”, por exemplo, abrange várias gerações; em “Copacabana” e “Para Clarice Lispector, Com Candura”, o autor entrega-se à melancolia do passado, enquanto que em “Meu Tio” e “O Sítio” já surgem referências à “peste” contemporânea e à ubíqua “máscara da covid”.
Graças à sua heterogeneidade, “Anos de Chumbo e outros contos” é um livro que assenta bem em qualquer estante. Para deleite dos admiradores (e daqueles que só conhecem um par de canções) do Chico cantor, esta obra é uma amostra do fascinante poder de observação e da subtileza linguística do artista carioca, que empresta à sua prosa uma musicalidade singular. De leitura simples e agradável, este é um volume de contos para devorar num piscar de olhos, porque a vida não é feita apenas de livros. Que o diga Chico Buarque.
Sem Comentários