Depois de lerem “Casa de férias com piscina” (Alfaguara, 2016), as vossas visitas ao médico nunca mais serão as mesmas. Será impossível não vos ocorrerem trechos do capítulo que abre o livro (pelo menos…). Marc Schloss, o nosso protagonista, é médico de família, e a sua vida interior, pela crueza gélida e calculista revelada, pelo cinismo a roçar o patológico e desviante, sempre sob a máscara da eficiência, concórdia e boa disposição, fica gravada na memória do leitor. Em Schloss, o espírito científico é levado à letra e ao extremo, bem perto da desumanização, embora à superfície se mantenha sempre funcional e consciente dos códigos sociais, dominados e utilizados com mestria. Todas as suas interacções são encaradas como eventos preparados ao detalhe, onde, perante uma uma reacção pretendida, o estímulo utilizado é infalível na comprovação da causalidade matemática gerada com sucesso em todos os aspectos da sua vida.
Schloss é o grande trunfo de todo o enredo, e sempre que a acção se centra em si, ganha fôlego, porque torcemos para que tropece, ansiosos por desvendar qual o tamanho da queda que tarda em chegar. O acontecimento trágico que espoleta o pathos da acção (e do qual apenas supomos os contornos completos), desencadeia-se depois de uma quebra nesta rotina controlada e previsível, motivada em parte pela inveja, mas também pelo ódio e pelo desejo de vingança, a boa velha, pecaminosa e mesquinha ira. Para evitar revelações inusitadas, adiantamos que, como sempre, o “x” marca o lugar, o que, no caso, significa que o próprio título do livro indica o cenário onde começa o descontrolo do nosso caro anti-herói.
Como “médico das estrelas”, facilitador para pedidos mais peculiares, habituado a cenários sumptuosos, pessoas apenas suportáveis pela fama e dinheiro que amealharam e segredos embaraçosos e escatológicos mantidos a cobro do segredo profissional, Schloss é como um deles sem nunca o ser, fascinado e enojado na mesma medida, conforme a circunstância seja mais ou menos vantajosa. O poder implícito que detém sobre aquelas vidas é a sua consolação. Mas é no seio da família (em particular na companhia das filhas Júlia e Lígia) que se permite sentir algo para além do necessário para vencer no jogo da vida. Instinto protector, talvez afecto, arrisquemos a maiúscula do Amor. Afinal, os seus genes perpetuados por uma nova geração merecem atenção extra. Entre ele, a sua esposa Caroline, Marc Meier (actor todo poderoso e multimilionário, dono da “casa de férias com piscina” onde o casal Schloss acede ficar hospedado por uns dias…) e Judith Meier, cria-se uma envolvente e perigosa relação de co-dependência e dominação, onde os instintos mais básicos são postos à prova. E mais não contamos, porque é desta mistura de ingredientes que vive o livro.
Próximo do registo ligeiro e escorreito de literatura “de Verão” (conceito abrangente e ironicamente redutor e injusto), a escrita de Bloch, com algumas cedências inevitáveis à imagética e chavões mais hollywoodescos, tem um carácter vincado e distintivo, que a coloca bem acima dos Dan Browns desta vida. Para além de nos pôr a torcer por uma personagem de carácter duvidoso, o holandês é um talentoso criador de personagens, usando o detalhe sem a facilidade do excesso de adjectivação, das metáforas e comparações óbvias, ou das surpresas do género “deus ex machina”, verdadeiros insultos à inteligência do leitor. Bloch opta por cambiante ligeiros, um suspense que se adensa até ao desconforto, semeando indícios e presságios para criar uma absurda familiaridade com o leitor que, apesar de consciente do carácter ficcional da obra, convoca as suas melhores falsas memórias, inculcadas por anos de protótipos de masculinidade, fatalismo e dinâmicas de casal, mas também da adolescência e dos seus agudos contrastes e contradições.
“Casa de férias com piscina” devora-se de uma dentada, com vontade e sem rasto de culpa, pela escrita cirúrgica e sempre consciente dos ritmos e da coerência na evolução das personagens. De leitura compensadora, problematiza e prende sem truques e com um protagonista marcante, personagem aterradora porque, para além da sua verosimilhança, projecta um estranho magnetismo e familiaridade, talvez por todos conhecermos um médico e, por muito que nos convençamos do contrário, esquecermos que, mais tarde ou mais cedo, as nossas vidas estarão na mão de alguém que, bem vistas as coisas, nunca deixa de ser um completo estranho. A ler, sem dúvida.
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