“Eu só abomino os carrascos”. As palavras são de Albert Camus, e servem de enquadramento e sinopse reduzida a “Cartas a Um Amigo Alemão” (Livros do Brasil, 2021), compiladas, pela primeira vez e reunindo quatro cartas, no ano de 1945. As cartas foram escritas por Camus durante e ocupação de França pelas forças nazis, tendo sido publicadas na clandestinidade. Cartas onde Camus evidencia todo o espírito humanista que alimentava a sua vida e escrita, defendendo que, apesar da existência terrena estar condenada à brevidade, o homem mortal não deverá morrer sem resistência.
No lugar de terem terminado a amizade numa noite de copos, a que provavelmente se seguiria uma altercação com agudos crescentes rematada com uma troca de sopapos à Rocky, a amizade foi escrutinada e arrumada por Camus em quatro actos, alimentados a papel, tinta e selos de correio.
“Já lá vão cinco anos, e desde então estamos separados”. A primeira carta foi escrita em Junho de 1943, na qual Camus fala de uma derrota que conduzirá à vitória, prevendo a derrota alheia, Uma carta que nasceu a partir de uma farpa lançada pelo seu amigo alemão, que lhe terá disto isto: “Você não ama o seu país”.
A segunda carta, escrita no mês de Dezembro de 1943, mostra um Camus empenhado em tornar, esta amizade em frangalhos e sem possibilidade de reparação, “nítida”. É uma carta onde a ira de Camus está presente, apontando à recuperação da política de honra extra-governação – “Mas um governante, ao fim e ao cabo, não tem grande importância” -, apontando também o dedo à invasão: “A meditação é amiga da noite. E faz agora três anos que vós fizestes descer a noite sobre as nossas cidades e sobre os nossos corações”.
“A nossa Europa não é a vossa”. É na terceira carta (Julho de 1944) que Camus expressa, de forma bem vincada, a sua ideia de Europa: “…para nós, ela é a terra do espírito onde, desde há vinte séculos, se desenrola a mais espantosa aventura do género humano”. Um aventura sem término, inacabada, na imagem de uma Europa que “está sempre a fazer-se”.
A quarta carta surge em Julho de 1944 e, por esta altura, a balança da guerra já pendeu para o lado de Camus, que tem aqui o claro propósito de colocar um término racional numa amizade, explicando “como foi possível que, sendo nós tão parecidos um com o outro, sejamos hoje inimigos, como foi possível estar do seu lado e por que razão hoje tudo termina entre nós”.
Como escreveu Camus no prefácio à edição italiana, estas “são páginas de circunstância que podem, por isso mesmo, deixar transparecer um tom de injustiça”. Isto porque, tendo usado o «vós» nas cartas, poderia ser acusado de se estar a dirigir ao povo alemão – o mesmo para o «nós» que, ao contrário de significar “franceses”, ia ao encontro da ideia de “europeus livres”. Camus que, diga-se, nunca cometeu o erro de confundir nazis com alemães, e que disse amar demasiado o seu país para poder ser considerado nacionalista. Segundo ele, estas cartas constituem um “documento da luta contra a violência” que, a uma distância de quase oito décadas, defendem também uma ideia que hoje parece estar a ser abalada nas fundações: a do ideal europeu.
Já “Conferências e Discursos” (Livros do Brasil, 2022) é, para os admiradores do espírito activista e humanista de Camus, um achado, mesmo que, em 1946, tenha dito isto: “Não tenho idade para dar conferências”. O livro reúne os trinta e quatro textos conhecidos dos discursos públicos do autor, terminando com a transcrição inédita da sua alocução no jantar da associação L`Algérienne, em Paris, a 13 de Novembro de 1958. Todos os textos, excepção feita a um deles, foram pronunciados após o final da Segunda Guerra Mundial.
Como se lê no preâmbulo a esta edição, Camus parecia não fazer grande distinção “entre o empenhamento do cidadão comum e o empenhamento do escritor”, opondo a verdade humana “ao terror, à mentira, à abstracção burocrática e ideológica, à injustiça”. No seu percurso de vida, Camus reconheceu a dualidade do destino comum e da liberdade individual, tendo feito parte de uma geração que quis quebrar o movimento infernal do pós-guerra, procurando, palavras suas, “retirar de si o veneno da morte” – em suma, lutar contra a anunciada “crise do homem” com a “dádiva da solidariedade”.
Camus escreveu e actuou contra a infelicidade do mundo, destacando sempre a ideia de civilização e o sentimento fraterno que une os homens no caminho para o seu inevitável destino – uma ideia que encontramos em muitos destes textos. Entre a vida e a literatura em momentos críticos, Camus não teve dúvidas: “Prefiro os homens empenhados às literaturas empenhadas. Coragem na vida e talento nas obras, já não é assim tão mau”.
Cada um dos ensaios e discursos, para além do título revelador e do ano em que foram escritos/proferidos, é precedido por uma breve nota explicativa. Quanto a temas, esta viagem pelo espírito humanista de Camus inclui a exaltação da cultura mediterrânica, a ponte entre europeus e árabes, a grande paixão pela Grécia Antiga, a tentação humana pela inércia, a necessidade de superar a presença da contradição, a utilidade do diálogo entre crentes-não crentes ou uma condenação veemente do franquismo. Pelo caminho, sempre a dádiva da solidariedade desejada por Camus e uma imagem idealizada de uma Europa em fanicos – “Este velho Continente possui muitas cicatrizes, o que lhe confere um rosto sinistro” -, que, a décadas de distância, poderá servir ainda de ideal e caminho: “Resumindo, exige que amemos mais a vida do que as ideias. Eis, talvez, o que a torna difícil numa Europa que deixou de saber amar a vida e parece amar o futuro acima de tudo, para tudo lhe sacrificar. Mas, se quiser reaprender o gosto pela vida, precisa de substituir os valores da eficácia pelos valores do exemplo. E, em boa verdade, se não for a Europa a fazê-lo, ninguém no mundo o fará em seu lugar”.
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