Se a literatura fosse rock n` roll, Virginie Despentes era bem capaz de ser a maior estrela europeia actual, disputando com a argentina Mariana Enriquez o Grammy para melhor álbum alternativo. Autora da trilogia Vernon Subutex – que já lemos e à qual iremos dedicar um texto a preceito –, Despentes assina em “Caro Idiota” (Elsinore, 2023) uma elegia à sociedade contemporânea, espartilhada pela cultura woke, a política do cancelamento e, diga-se, uma tremenda idiotice – que chega sob várias formas.
O livro é contado a três vozes, entre cartas, mails e publicações de Instagram, numa conversa tensa e em crescendo onde, aos poucos, se vêem espremidos medos e neuroses, numa catártica e exposta introspecção que resulta do acto da escrita.
O idiota de serviço dá pelo nome de Oscar, um escritor que se vê no centro de (mais) um escândalo MeToo quando Zoé Katana, sua antiga assistente, regressa para um ajuste de contas público. A outra personagem deste triângulo pouco amoroso é Rebecca, uma actriz de cinquenta anos que, apesar de se manter no ponto da atracção, começa a sentir mais do que nunca a discriminação da indústria cinematográfica.
Em queda livre, Oscar decide publicar no seu Insta um texto onde, após elogiar a metamorfose artística de Rebecca enquanto “mulher perigosa, ora venenosa, vulnerável, comovente ou heróica”, por quem se apaixonou umas quantas vezes e entrou em muitos dos seus sonhos húmidos, a descreve como “pesadona, descuidada, a pele ascorosa, uma personagem de mulher suja, estrepitante”. Rebecca devolve-lhe uma carta curta e grossa, desejando “que os teus filhos morram esborrachados debaixo de um camião e que os vejas a agonizar sem poderes fazer nada” – e outras imagens gráficas bem piores. Depois desta troca de mimos seria de pensar que a coisa ficaria por ali, mas uma amizade improvável – ou perto disso – irá nascer entre ambos, confidentes acidentais numa revisitação ao passado e num questionamento sobre o tempo presente. Uma amizade que encontra um ponto comum na relação de ambos com as drogas, ainda que com motivações bem diferentes: Oscar droga-se por inabilidade social, Rebecca para fugir ao tédio.
Quanto a Zoé, apesar das muitas ameaças que vai recebendo, vê a Internet como o seu espaço de (des)conforto e demolição: “É aqui que contamino, que respondo, que represento, que encontro”. É ela que, na “Crónica da Minha Mão nas Tuas Fuças”, dá o peito às balas, encontrando resistência de ambos os lados da barricada que levantou: “Não são só os homens que me dizem que me cale. As mulheres também”. Ao mesmo tempo, vai encontrando o conforto junto de feministas lésbicas radicais, que dizem que “a pila não é para chupar, é para seccionar”.
Ao mesmo tempo que Oscar vai escrutinando a sua vida navegando pelo território da auto-censura, quase chorando enquanto vai dizendo “sinceramente, não sabíamos que estavam furiosas”, Rebecca – ou Virginie Despentes – trata de desacreditá-lo, para que o leitor não ceda à tentação do mimo e se mantenha do lado certo, fazendo o devido manguito ao patriarcado: “Não sacralizo a palavra vítima. Evidentemente, às vezes as mulheres mentem. Seja porque não têm qualquer escrúpulo, sejam porque pensam que é legítimo. Mas a percentagem de mentirosas inveteradas continua a ser ínfima entre as vítimas, enquanto a percentagem de violadores entre a população masculina deveria alertar-vos para o declínio das vossas sexualidades. E, apesar de tudo, vejo-vos muito mais escandalizados com a ideia da possibilidade de uma acusação injustificada do que ficam por saber que há violadores entre os vossos amigos. A partir daí, como dizer… Mesmo pondo nisso uma grande dose de mansidão, é difícil termos pena de vocês”.
Atravessando o período do confinamento, “Caro Idiota” é um livro feminista indie – “A feminilidade é uma prisão e apanhámos perpétua” – que se recusa a acreditar num mundo pintado a preto e branco. Se, por um lado, se trata de um grito colectivo, certeiro e enraivecido contra uma sociedade patriarcal em queda – espera-se -, um dedo do meio à impunidade e ao domínio masculino sobre a mulher, é também um lugar de reparação, que toca nas zonas cinzentas do que é ser humano, pintando-nos como seres falhados em busca de um (eterno) recomeço. Fabuleux.
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