Entre muitas outras coisas, este novo tempo de pandemia e confinamentos terá servido para questionar o capitalismo desenfreado a que o século XXI se entregou, onde a desigualdade afastou a sociedade humana da ideia de uma sociedade justa: “aquela que permite que o conjunto dos seus membros aceda aos bens fundamentais mais amplos possíveis”, como a saúde, a educação, a cultura, a economia, a participação na vida social ou o ganho de uma consciência cívica e política.
Apresentado como a sequela de “O Capital no Século XXI” (2013), bestseller assinado por Thomas Piketty traduzido em 40 línguas e com mais de 2.5 milhões de exemplares vendidos, “Capital e Ideologia” (Temas e Debates, 2020) pode ser lido de forma autónoma, numa viagem pela evolução histórica das grandes desigualdades de rendimentos e de patrimónios, tanto entre países como no seu próprio interior.
Para Piketty, “O Capital no Século XXI” apresentou duas grandes limitações: um olhar demasiado ocidentalizado e o facto de tratar as evoluções político-ideológicas como “uma espécie de caixa negra”. A ideia é, assim, “abordar de frente a questão da evolução das ideologias desigualitárias”, ficando desde já prometido um terceiro volume.
Como forma da sua própria legitimação, “cada sociedade humana tem de justificar as suas desigualdades”. Para Piketty, nos dias de hoje vigora “a grande narrativa proprietarista e meritocrática, que conheceu uma primeir hora de glória no século XIX”, que conduziu ao grande aumento das desigualdades sócio-económicas, observado em quase todas as regiões do mundo desde as décadas de 1980-1990. Desigualdade essa caracterizada “por um conjunto de práticas discriminatórias e desigualdades de estatuto e étnico religiosas”.
O alerta – e o desafio – é lançado logo na introdução: “Se não transformarmos profundamente o sistema económico actual para o tornarmos menos desigualitário, mais equitativo e mais sustentável, tanto entre países como no seio destes, então o «populismo» xenófobo e os seus possíveis êxitos eleitorais vindouros poderão, com grande rapidez, vir desencadear a destruição da globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020”. A luta pela igualdade e a educação surge assim como o motor do desenvolvimento económico e progresso humano apontado por Piketty.
Mas o que é, afinal, uma ideologia? Segundo o autor, “uma tentativa mais ou menos coerente de apresentar respostas para um conjunto extremamente vasto de perguntas que dizem respeito à organização desejável ou ideal da sociedade”, encaradas nas suas dimensões ao mesmo tempo sociais, económicas e políticas.
“Capital e Ideologia”, volume que atinge as mais de 1200 páginas, surge dividido em quatro grandes blocos – os regimes desigualitários da história; as sociedades esclavagistas e coloniais; a grande transformação do século XX; repensar as dimensões do conflito político -, a que não faltam gráficos e tabelas que sustentam, com grande dinamismo e clareza, a ideia de que a desigualdade é uma construção social, e por isso passível de ser eliminada. Um manifesto económico que reafirma Thomas Piketty como o número um dos teóricos de uma economia virada à esquerda.
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