“O bebé morreu.” É assim que Leïla Slimani marca o tom no tão esperado “Canção Doce” (Alfaguara, 2017), que acaba de chegar a Portugal pela Alfaguara, prometendo uma leitura intensa e misteriosa. Ao longo das primeiras páginas, antecipamos que a canção doce será entoada por alguém perverso, doentio, com intenções que espelham um lado negro de que não se quer ouvir falar.
Algo que se pode assemelhar à perversidade presente em “A Mão que Embala o Berço” (1992), de Curtis Hanson, ou à maldade simultaneamente presente e oculta em “O Génio do Mal” (1976), de Richard Donner. Histórias de terror, amas loucas, perigo latente no seio familiar, sorrisos débeis com olhares penetrantes de quem não está são. “Canção Doce” valeu a Slimani um dos prémios mais importantes da francofonia, o Goncourt, entenda-se.
Slimani tem estômago. A sua capacidade de descrever cenas terríveis de forma altamente gráfica é uma das suas mais marcantes características e, ao criar uma cena tão rica em pormenores precisamente no primeiro capítulo, permite que o leitor crave essa imagem e que fique sedento em acompanhar a história e conhecer os momentos que levaram a tamanha tragédia, num misto agridoce: há uma relação de amor-ódio com esta história.
Um dos grandes desafios que um escritor tem é conseguir manter o interesse do seu leitor e garantir um fio condutor homogéneo. Com altos e baixos na narrativa, sim, mas de forma a agarrar o seu leitor de forma desvairada ao longo do livro. Esses são os bons, os grandes contadores de histórias. Leïla Slimani tem uma excelente história para contar e é exímia na forma como no-la coloca, deixando em aberto algumas questões que, ao virar das páginas, vão sendo desvendadas e respondidas. A autora poderia, talvez, ter explorado um pouco mais a forma como a ama [louca] entra na sua espiral demente, não só expondo de forma mais prolongada as suas motivações, mas também atirando-a sem dó nem piedade para o meio da loucura. Revelar mais do que é capaz. Colocar a nu as suas intenções e preparar o leitor para o terrível desfecho, já conhecido no início do livro, através de terríveis ações. Reforçar a substância da personagem e torná-la odiosa.
Considere-se a exuberância dos pormenores, o realismo do quotidiano e dos dramas familiares (e maternos); a contextualização numa Paris não apenas actual e opulenta, mas também como anfitriã de emigração ilegal, pobreza e terrorismo; a exposição das motivações e características das personagens e o enquadramento no seu meio e nos seus vários papéis sociais. Considere-se também a presença e a sobreposição de tudo o que há de mais belo e de mais terrível: unem-se o nascimento e a morte, a ingenuidade e a manipulação, a bondade e o egoísmo. O resultado é uma leitura viciante que interfere com o leitor: uma história terrível e uma forma magistral de a contar. Mas não, não é uma leitura fácil.
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