No mundo dos quadradinhos, era normal ouvirmos, junto de quem se aproximava da mais temida aldeia impressa no mapa romano, a expressão “estes gauleses são loucos!”. Quem vai acompanhando o universo mangá há algum tempo, muito provavelmente já terá dado por si a pensar qualquer coisa como “estes japoneses são loucos!”, tal não é o poder de imaginação e de criação que parece emanar desta geografia oriental. “Boa Noite, Punpun” (Devir, 2024), de Inio Asano, é disso um bom exemplo.
Punpun, o protagonista, vive num lar em frangalhos, prestes a ser demolido sem dó nem piedade. Os pais lutam a cada dia, os adultos que o cercam vão alimentando neuroses pessoais e a rapariga por quem ia desenvolvendo um fraquinho acabou de se mudar para bem longe. Até aqui nada demais, mas Inio Asano, querendo destacar a distância a que Punpun sente estar do mundo, retrata-o – bem como a cada elemento da sua família – como um pássaro que parece não encaixar nas enciclopédias animais.
A sua vida ganha um novo fôlego com a entrada em cena de Aiko Tanaka, por quem se perde de amores à primeira vista: “A Aiko tinha um cheiro bom”, e sonhava com tornar-se actriz, cantora ou modelo, não escondendo a vontade de garantir bilhete de ida na nave que deixará o planeta quando este se tornar inabitável. Talvez por isso, Punpun decide trocar o sonho – alheio – de se tornar jogador de baseball – desporto que nunca praticou – por um outro: ser um investigador do universo, de forma a levar toda a humanidade para o espaço.
Mas nem só da transformação de um humano em pássaro se faz a estranheza – no melhor dos sentidos – deste primeiro volume da série: Deus aparece a Punpun sob a forma de um sorridente e algo impaciente cantor de R&B, não se cansando de repetir coisas como “sinceramente estou cansado desse assunto. Não tens outro?” sempre que é chamado a entrar em acção através do que o tio lhe ensinou: “Meu Deus, Meu Deus, Tinkle Hoy”.
Nesta versão tresloucada de Romeu & Julieta, que a certa altura parece se vestir com o sobressalto do assustador The Ring, abordam-se temas como a violência doméstica, o lado psicótico familiar, a iniciação sexual – com tiradas inocentes como “O meu cérebro!! Saiu pela minha pilinha!!” -, a descoberta do medo e a solidão que a todos assiste, como a certa altura o tio tão bem o suspira: “Os seres humanos têm dentro de si uma solidão que jamais será enterrada”.
Os desenhos de Inio Asano são sublimes, seja na forma como conferem uma normalidade a esta estranha meia-fábula ou quando ilustram, de forma extremada, as reacções dos adultos, algures entre a pura raiva e o prenúncio de um AVC. Um fantástico acrescento ao catálogo mangá da Devir.
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