Romance? Pelo tamanho, longe disso. Se retirarmos a introdução original de William S. Burroughs, vastamente superior ao romance, “Bicha” (Quetzal, 2016) é uma obra perdida na parca experiência de um escritor principiante, que quer despejar em texto a sua fascinante história de vida, adulterada a bel-prazer como o leitor pode e deve sempre consentir. Há rasgos de genialidade de um Burroughs vindouro, o que evoca as imagens mais belas que, de forma assustadora, são as mais sórdidas e ébrias algumas vez lidas, ou o Burroughs de quarenta e dois de febre da técnica cut-up de Nova Express ou The Soft Machine.
Exceptuando a análise posterior do autor e o prefácio, “Bicha” é, sobretudo, a sua obra com menos interesse estético – quer a nível da sua anorexia bulímica de páginas que podem ser confundidas com um conto extenso (mas interessará mesmo?), quer em termos do poder simbólico da trama.
A carreira literária do autor americano que figurou entre a elite Beat é apenas genial a passos curtos, no entanto, feliz na atmosfera que o autor de “Naked Lunch” iria aprimorar ao longo da vida: iria mais além do ébrio de mente reprimida pelo Eu animalesco, e dar-se-ia unha com carne com o ébrio semi-consciente graças à razão, mesmo que amoral e aprazida pelo caricato soturno.
É a dimensão transcendental que encanta esta narrativa de outro modo árida e sem densidade, demasiado dada à repetição estéril. Os espectros de Burroughs são complexos desde a morte de Joan, com quem foi casado, passando pela assumida inexperiência que resultou no fascínio exacerbado por Kerouac, colega de casa durante tempos determinantes, e com o culminar na pecaminosa edição muito posterior deste “Queer”, que dessa época só tem mérito pelo esforço de produzir um texto mais demorado e complexo. Esta edição, obrigatoriamente, possui o prefácio escrito aquando da primeira edição: como referido, o tal Burroughs maduro, que leu e escreveu muito como manda a lei, esse sim, um portento da literatura norte-americana do século XX.
O próprio considerava “Bicha” um romance sensacionalista. A Ace Books negara publicá-lo num contexto cultural em que a homossexualidade era profundamente reprimida e considerada uma doença mental. Mesmo com a importância que o reveste, aproveitado pelo marketing editorial um pouco por todo o mundo, é um Burroughs muito, muito fraquinho – já com bicho, mas verde.
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