A 8 de Dezembro de 1930, Florbela Espanca abandonou por sua iniciativa um mundo ao qual nunca pertenceu realmente. É com o momento da sua morte que Ana Cristina Silva inicia “Bela” (Bertrand Editora, 2020), uma biografia ficcionada deste grande vulto da literatura portuguesa.
A primeira edição deste livro foi publicada há quinze anos, tendo grande parte sido reformulada de acordo com a evolução da escrita da autora. Ana Cristina Silva é doutorada na área da Psicologia e a sua formação ajudou-a certamente a mergulhar na mente desta mulher tão apaixonada quanto apaixonante e daqueles que a rodeavam. Navegando por estas páginas belíssimas, encontramos as memórias da poetisa alternadas com os pontos de vista dos seus três sucessivos maridos, do pai, da mãe e da madrasta. Sofremos com ela e por ela, perante a incompreensão e a solidão a que foi votada desde tenra idade e que apenas o irmão mais novo, Apeles, conseguiu romper.
Segundo um pensamento aqui atribuído a Florbela, a sua história verdadeira pertence ao tempo anterior às memórias de que se lembra. Tendo nascido de uma relação extraconjugal, foi afastada da mãe e criada em casa de um pai que só a perfilhou anos depois da sua morte, com uma madrasta/madrinha que provavelmente nunca a aceitou. A consciência de si que lhe transmitiram, juntamente com a condição de bastarda em Portugal, na viragem do século XIX para o século XX, terá sido uma opressão constante. O primeiro encontro com a poesia revelou-lhe o poder das palavras para sarar feridas e permitiu-lhe sonhar com uma vida diferente, que perseguiu até muito perto do fim, mas sempre em vão.
Os poemas foram uma busca insaciável por uma alma que a compreendesse, um amor idealizado, capaz de curar mágoas acumuladas. Procurou-o entre vários homens, desafiando as convenções acerca do comportamento feminino, mas encontrou a desilusão em cada casamento. Tal como o pai, os maridos viviam dominados por uma ou outra forma de egoísmo que os impedia de se interessaram verdadeiramente pelos sonhos desta mulher singular, ou de entenderem o significado da literatura na sua vida. Florbela deu por si a habitar “dentro das suas rimas como dentro de uma cela individual, na mais completa solidão”. Após o falecimento do irmão, “a dor era uma agulha que lhe perfurava a visão do mundo” e o repouso proporcionado pela morte passou a afigurar-se-lhe preferível a tudo o resto.
Florbela perdeu o lugar no seu corpo “para dar lugar aos sentimentos de todas as almas”. Para benefício da literatura e de todos nós, a sua obra perdura e este romance psicológico, sensível e poderoso, reaviva a sua memória em todo o seu arrebatado e doloroso esplendor.
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