“Os gatinhos são cegos e desdentados, mas cedo se tornarão caçadores. Os ratinhos nascem sem pelo e cor-de-rosa, mas os que conseguirem tornar-se ratos compridos, gordos e peludos cedo aprenderão a sair sozinhos, com a cumplicidade da escuridão.”
Em Nápoles, os jovens, alguns deles pouco mais que crianças, assumem cada vez mais cedo e com mais pujança o domínio das ruas, do comércio de droga e de armas, a disputa e o ganho de territórios de influência e poder no mundo mafioso que, dia após dia, determina o presente e o futuro da vida de quem vive na cidade.
Roberto Saviano prossegue a apresentação de um retrato cru e rude do que é (sobre)viver dentro ou à sombra da máfia napolitana, e a forma como os mais novos se dispõem a realizar o que for necessário. “Beijo Feroz” (Alfaguara, 2019) dá continuidade à história começada em “Os meninos da Camorra”, publicado também pela Alfaguara no ano passado. Porém, se quisermos entender o âmago desta missão de vida que Roberto Saviano assumiu, devemos recuar até aos anos de 2006/08, e tomar contacto com o relato que o autor realiza em Gomorra, expondo os meandros mais íntimos da organização, algo que lhe granjeou ódios de morte e uma vida refém de ameaças e tentativas efectivas de o matar.
Agora, Saviano salienta como em Nápoles ser criança pode significar ser rei, um potencial de poder determinado por aspirações e determinações de sobrevivência. E fá-lo transportando o leitor para a intimidade e movimentações de vários jovens, para as suas estratégias e decisões de jogar e atacar, em como se organizam e actuam para se defenderem e se afirmarem.
Será que os maus também sofrem e choram? Antes de se tornarem no que são, sobreviventes de guerrilha, acácias de guerras longas, terão simplesmente sido gente com medos e insegurança por detrás da máscara de Hércules. Talvez, em muitos aspectos, também encontremos uma visão humanizada da crueldade.
A acção tem diversos protagonistas, com especial destaque para Nicolas, o Marajá, um jovem de 16 anos, já o Homem e o Líder do grupo, da zona e da família, a tentar vingar a morte do irmão.
“Beijo Feroz” traça um retrato que se sente fiel da realidade e das relações mafiosas em Nápoles, envolvendo o comércio de drogas, a marcação e preservação de territórios cujo controlo passou a ser condição de sobrevivência. O retrato inclui as ligações familiares e as de negócio, sem descurar os códigos de comunicação, rituais e simbologia variada, ao nível do comportamento e da imagem. Ou as relações de poder inter-geracionais, a hierarquia de informação, influência e decisão.
Existirão coisas piores do que a morte? O ódio de morte entre miúdos, muitos dos quais outrora amigos, que agora se digladiam nas ruas pela reposição do poder e da dignidade, batalha atrás de batalha, cada uma mais sangrenta e devastadora, também para quem os rodeia, tornando quem amam alvos perfeitos de vinganças inimagináveis para o comum dos mortais.
“De Nápoles ninguém se pode ir embora. Pode emigrar para a Austrália, passar a ser criado de cangurus e lançar o laço, mas carrega essa origem como um emblema.” A dificuldade em distanciar-se porque se fica ligado à adrenalina e à identidade, mas também porque os outros não os deixam desligar-se. Uma ligação para a vida, dure que tempo durar.”
O desespero e a impotência de mães que vêem as suas crias enveredarem pela vida da máfia e do crime. Ainda, a vida afectiva dos protagonistas, laços familiares, amorosos e de fidelidade ao grupo, à vida que uns procuraram e que outros não conseguiram evitar.
“O passado não se pode mudar“, afirma um dos protagonistas do livro, afirmação que bem poderia vir de Saviano, refém da coragem de continuar a retratá-lo: um passado que testemunhou e que o tem feito pagar uma pesada factura, só e acossado, nas suas próprias palavras, “como se fosse um doente terminal”.
Sem Comentários