“Bartleby é o campeão dos descrentes. Ele vê na parede. Uma história de Wall Street em que esbarramos numa parede. Tratar-se-á de uma fábula profética sobre um colosso febril de pés de barro chamado liberalismo? Mas Bartleby é antes de mais uma atmosfera. Faltava o talento de José-Luis Munuera para traduzir em imagens toda esta melancolia que ganha uma estranha doçura ao encarnar-se na sabedoria da recusa.” [Philippe Delerm, no Prefácio]
Muito antes do quiet quitting, uma moderna demissão passiva que pretende evitar que queimemos o fusível – ou, como dizem our friends, o burnout -, já Herman Melville, o autor da enorme “Moby Dick”, havia lá chegado através de “Bartleby, o Escrivão”, e de uma linha que ficou para a história da literatura: “Preferia não o fazer”. Uma história contada ao leitor por um narrador idoso, que diz preferir a vida fácil à ambição, e que vai sobrevivendo na advocacia através do negócio entre acções e hipotecas e escrituras de homens ricos – prudência e método são as suas melhores qualidades.
Trata-se de um dos mais curtos e enigmáticos clássicos da literatura, que a cada leitura poderá ser olhado de um ângulo diferente: será Bartleby um homem ou um fantasma? Um alter-ego do próprio Mellvile? À medida que o lema de vida – “prefiro não o fazer” – de Bartleby vai sendo adoptado, de formas distintas, pelos seus pares, percebemos que é nestes que a loucura vai progredindo, numa sociedade que em nome do lucro deitou a humanização às urtigas. Se Kafka tivesse sido caricaturado numa figura literária, Bartleby seria sem dúvida a escolha mais óbvia. Nesta adaptação gráfica de José-Luis Munuera, que chega às livrarias com o título “Bartleby, o Escriturário” (Arte de Autor, 2023), o ângulo escolhido está bem vincado no subtítulo: Uma História de Wall Street.
“Revejo ainda essa figura indecisa que cruzou a minha porta. Palidamente cuidado, lamentavelmente decente, incuravelmente solitário!”. Retrato sintético e no alvo desta enigmática figura que, de um “oásis de eficiência”, caminhou para o “preferia não o fazer”, inventando uma negativa carregada de classe.
“Em que espécie de miséria, em que terrível orfandade vive Bartleby, único espectador da sua própria solidão?”. Talvez nunca o saibamos, mas é com ele que aprenderemos a conjugar o verbo preferir, nesta apologia ao livre arbítrio e à dissidência na qual a derrota é, ao invés da perda, uma vitória pessoal e privada – que, quem sabe, poderá conduzir ao enguiço da máquina liberal: “Não se pode manter uma parede se um dos tijolos estiver mal posto e o sistema não se pode manter sem eliminar e substituir as peças que não encaixam”.
As ilustrações de Munuera são um belo e descolorido – no melhor dos sentidos – tributo a esta obra intemporal de Mellvile, um olhar sobre a obediência cega e a resistência passiva, um tímido, melancólico mas assertivo convite à sublevação.
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