Numa entrevista televisiva de 2018, o famigerado autor George R. R. Martin revelou que, para ele, há dois tipos de escritores: os arquitectos e os jardineiros. Os arquitectos têm o edifício planeado e estruturado, ainda antes de lançarem a primeira frase; já os jardineiros, começam por plantar uma semente criativa e regá-la cuidadosamente com o seu sangue, sem saberem à partida exactamente em que direcção crescerá a obra ou qual será a sua forma final.
Tomando por boa esta distinção, “Barbárie de Anjos Pedantes” (Oro, 2024), de Bruno Kalil, é claramente fruto de um jardineiro. O autor assume-se como um escritor intuitivo, alguém que escreve sem planos e sem estrutura de base, deixando-se guiar pelos personagens e pela história. Neste caso concreto, a semente foi o próprio título, que precedeu o livro.
Nas páginas deste pequeno volume encontramos pessoas imersas em culpa e redenção, inocência e volúpia, num torvelinho que as consome. Encontramos também uma geografia pessoal e emocional que nos transporta a destinos tão distantes entre si como a Suécia e a África do Sul, a Alemanha e Miranda do Corvo, no encalço de gente perdida num jogo de espelhos.
Cada capítulo parece contar uma narrativa distinta. Contudo, à medida que progredimos na leitura, começamos a aperceber-nos das ligações subterrâneas entre as várias histórias e personagens, constatando que as coisas podem não ser aquilo que aparentam.
A escrita de Bruno Kalil é muito visual, capaz de conjurar imagens de grande beleza ao virar da página. A narrativa vive de rasgo e emoção, mais do que de técnica a régua e esquadro. O autor não tem medo de sair das linhas, pintar fora do desenho — em determinados trechos, a história assemelha-se a um bólide a alta velocidade, dominado com mão de ferro, sempre na iminência do despiste.
É um livro experimental, elíptico, uma criatura volátil cheia de ecos e enigmas, segredos e anjos caídos. Desdobra-se por camadas, como um puzzle que pede ao leitor que o decifre. Por vezes é desconcertante, no sentido em que pede múltiplas leituras para destrinçar os volteios da narrativa.
Há uma ligação forte ao autoconhecimento e ao desenvolvimento pessoal: sob a membrana das histórias, corre um simbolismo entretecido nas palavras, um subtexto que confere à obra a dimensão extranarrativa que a enriquece. Um livro que apresenta Bruno Kalil como dono de uma voz verdadeiramente original — algo raro no panorama literário —, alguém cujo percurso vale a pena seguir com atenção.
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