Numa casa londrina quase vazia, uma octogenária interrompe a escrita das suas memórias, sobressaltada com a ideia de que a morte pode surpreendê-la e fazer o manuscrito cair nas mãos erradas. Enquanto viúva de Sigmund Freud, está ciente de ser “apenas figurante numa narrativa alheia, já escrita e considerada perfeita, vigiada dia e noite com uma devoção quase religiosa por uma multidão de pessoas que a assumem, propagam e defendem”. O último sacrifício que pode fazer pela família é poupá-la ao sofrimento que causaria uma narrativa diferente – a qual, contudo, tem direito a existir. A solução é usar apenas o pensamento para compreender quem foi e como se transformou, sabendo que isso aconteceu, sobretudo, através da relação com o noivo-marido: “Saber quem amei, e como, é também descobrir a minha própria face”. O resultado é uma “Autobiografia Não Escrita de Martha Freud” (Porto Editora, 2024), elaborada por Teolinda Gersão com base na correspondência iniciada em 1882 por esta mulher, então de apelido Bernays, com Freud, a quem ela tratava por Sigi – mais de 1500 cartas trocadas até 1886, ano do matrimónio, além de missivas dele para outros destinatários.
Os textos íntimos de Freud – que já surgira como personagem na obra anterior da autora, “O Regresso de Júlia Mann a Paraty” (ler crítica) – mostram-no autoritário e desprovido de empatia. Um homem atormentado por fantasmas, que por sua vez atormenta outros. Um poço de contradições, orgulhoso da sua capacidade de raciocínio lógico, mas propenso ao pensamento mágico e a ciúmes irracionais. Um controlador capaz de provocar conflitos cíclicos para afastar a noiva de parentes e amigos, que fala indevidamente em nome dela e lhe dita o que deve pensar, tão centrado na posse e no poder que lhe escreve coisas como “Pertences-me e vais mesmo ser como eu quero”.
Acreditando que ele mudará, a jovem Martha – que, ousadamente, inclui em algumas cartas sugestões eróticas às quais ele não reage – vai aceitando algumas distorções da verdade para apaziguá-lo, mas a violência psicológica corrói o amor, levando-a a casar já com poucas expectativas de ser feliz. À beira dos 26 anos, considera-se “bastante envelhecida”, além de pobre, e não vislumbra um futuro melhor.
Pela análise das cartas, Martha revê criticamente o passado, notando pormenores que outrora lhe passaram despercebidos e surpreendendo-se por ter suportado tão grandes injustiças. Através delas, estabelece um diálogo com Freud, “com olhos experientes e lúcidos”, mas também com a sua versão mais nova, ora parabenizando-a, ora revoltando-se pela submissão demonstrada: “a jovem Martha estava ainda muito longe de alcançar a visão de agora, embora por vezes se defendesse com lucidez”.
A autora multipremiada retoma, numa narrativa inteligente sobre relações humanas entre figuras históricas, o tema do silenciamento da voz feminina, que já surgira no seu primeiro livro, “O Silêncio” (ler crítica). Aos olhos do mundo, Martha preserva “o estereótipo há muito estabelecido de ter sido a esposa do génio, e agora a sua viúva, magnífica dona de casa e mãe exemplar dos seus filhos”. A verdade que lhe importa é guardada para si e para aqueles que a quiserem descobrir.
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