Sobre “Autobiografia Não Autorizada” (Tinta da China, 2021), de Dulce Maria Cardoso, diz-se isto: “abrem lugar para cada um de nós. Como uma poltrona que é moldada, dia após dia, pelo peso de um corpo, transformando-se no seu ninho“.
A autora dispensa apresentações e, depois de terem sido amplamente celebradas, estas suas crónicas chegam agora ao leitor, que terá agora a oportunidade de lê-las num conjunto de mais de meia centena, num volume que toca a infância, o retorno, amores e desamores, residências literárias, personagens de romances, a Eliete para a qual tantos querem continuação ou, claro, o cenário pandémico actual, que não podia deixar de assombrar os relatos à medida que o friso cronológico avança. Crónicas que espelham preocupações políticas, sociais e questões eternas, que estão mais do que na ordem do dia para lá da temática covídica.
“(…) mas não penso que haja uma arte masculina ou feminina, isso seria negar ao criador o gesto artístico de se ampliar, de ser diferente, de ser outro. (…) criar é procurar um leito diferente daquele em que a biologia, a sociedade e a cultura me verteram, procurar caminhos por onde possa – qual rio – desaguar no mar.” (O lado errado, p. 181)
Nessa procura por ser um outro, pode uma autobiografia ser fidedigna à realidade que quer relatar? Dulce Maria Cardoso (DMC) diz-nos que não, acrescentando tratar-se de uma missão impossível. “(…) sou sempre personagem de mim própria, mesmo que narre tudo na primeira pessoa e me apelide Dulce, como se não estivesse a inventar‑me“.
Uma autobiografia será, então, uma reinvenção de um eu que desejámos a um certo ponto, ponto esse que, com o passar do tempo, se alterou, tal como se alteram as memórias na ressignificação que as mesmas vão tendo ao longo da vida, pela forma como as interpretamos e lhes atribuímos valor. No entanto, não é por isso que se tornam mentira: são apenas reinterpretações, ficções de nós mesmos. Além do mais, quando se escreve, existem ainda os leitores que, ao ler, descodificam e interpretam as verdades manipuladas que o autor expõem sob a forma de uma biografia. Por isso, a ficção é uma busca incessante por “saber onde vai cair a sombra do que nos rodeia”. (O sol quando se põe não é para todos, p. 167)
Navegar nas crónicas autobiográficas de DMC será como navegar em trechos da vida de tantos nós, especialmente por muitas relatarem a “vida anormal” a que decidiram chamar o novo normal. Não obstante, este punhado de peças de puzzle precisa apenas da mão hábil de cada leitor para encaixar nas mais diversas fases da vida, especialmente naquelas em que “acreditávamos que tudo era recuperável, existíamos como se fôssemos eternos” – Uma casa com vista sobre a cidade, pp 92) – e, assim, aconchegarmo-nos no ninho da ficção, vivendo várias vidas numa só: a de leitor.
“Quanto mais difuso o mundo à minha volta, mais diluída me sinto no que me rodeia. Sempre que posso, deixo-me ficar em casa ou parada em frente ao que me ameaça. Até que as coisas, possivelmente exaustas de se sentirem observadas, se transmutam. Acontece, então, sobressaltar-me ou demorar a reconhecer aquilo que de novo se me apresenta.” (Líquida, esvaziando-me, p.57)
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