Uma das últimas imagens que guardo de João Paulo Cotrim ficou gravada na última edição do Folio. Segurando na mão um apreciável e não menos ferrugento facalhão, pedia-me amavelmente para sacar do prepúcio de forma a avançar com uma breve intervenção médica. Isto durante uma noite bem regada no Sítio dos Bons Malandros, um lugar que, para mim, foi ganhando – mais por escolha do que por negligência – o estatuto de mito urbano, destinado a habitar somente os melhores sonhos literários. Foi preciso um malandro chamado Cotrim, o lançamento de uma cerveja literária com o nome de Cadáver Esquisito e um jantar onde quase perdi as calças para transpor as portas de um lugar onde, durante um fim-de-semana, fomos estupidamente felizes, e que terminou por volta das três da manhã com um prato de ervilhas e ovos escalfados – regado com um belo tinto e uma conversa sobre resultados autárquicos nas… Caldas da Rainha.
Conheci o João Paulo Cotrim através da Abysmo, editora que simpaticamente me vai enviando exemplares da melhor poesia, prosa e outros universos produzidos por esta família das letras, e que me apresentou a boa gente como o Valério Romão, a Inês Fonseca Santos, o Luís Afonso ou o Paulo José Miranda, entre tantos outros.
Num mundo editorial onde a componente do negócio disputa acesamente o circuito nacional de pesos pesados, João Paulo Cotrim era dissonante. Não que não procurasse vender livros, mas a forma como o fazia era bem mais despreocupada, como se apenas se ralasse em pôr o livro o circular. Ao contrário das normas e mandamentos do marketing, os livros da Abysmo não são muito dados a apresentar, no invólucro, grandes referências ao autor ou ao livro, deixando o leitor entregue aos seus mistérios. Algo que virou uma brincadeira entre nós, quase uma private joke literária, que íamos contando um ao outro sempre que nos cruzávamos em andanças literárias.
Foi, entre tantas outras coisas, jornalista e editor, poeta-escritor, grande divulgador da banda desenhada portuguesa, fundador da Arranha-Céus e da Abysmo – editora que se veio a tornar qualquer coisa como uma família alargada. Deixou-nos aos 56 anos e, por esta altura, deverá estar a actualizar o seu Diário das Nuvens, convencendo os anjinhos a atirar com o politicamente correcto às urtigas enquanto não se decide entre a cerveja ou o tinto. Até sempre e obrigado, meu bom malandro.
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