Preso pelo remorso, por um compromisso de honra e, sobretudo, pelo amor, um homem atravessa a Europa, de Portugal à Rússia. Por mais dificuldades que tenha de enfrentar nos tempos conturbados que lhe couberam em sorte, está disposto a ir “Até ao Fim da Terra” (Porto Editora, 2023), como sugere o título deste novo romance histórico de João Pedro Marques.
Estamos no início do século XIX, num Portugal assolado pelas invasões francesas. Para impedir que o inimigo chegue primeiro às linhas de Torres Vedras, e daí a Lisboa, o comandante das forças defensivas anglo-portuguesas, Wellington, ordena o abandono de parte substancial da Beira e da Estremadura, deixando estas regiões expostas a pilhagens e outras violências. Adicionalmente, por saber que as linhas de Torres não bastam para deter os invasores, Wellington impõe a destruição das culturas, para privá-los de alimento, bem como a queima dos barcos das populações ribeirinhas e a remoção de todos os animais que pudessem servir de transporte, a fim de dificultar-lhes a progressão.
Em consequência, uma multidão em pânico segue o exército em direcção a Lisboa, fugindo com o que pode levar, depois de ter enterrado ou destruído o que foi obrigada a deixar para trás. É nesse contexto que o protagonista desta obra, Bento José Calheiros – um capitão da cavalaria portuguesa, atormentado pelo trauma de ter morto involuntariamente uma criança –, é incumbido da tarefa de escoltar os cofres públicos de Coimbra até à capital, com um grupo de homens por si escolhidos. O seu caminho cruza-se com o de uma jovem viúva e mãe de dois filhos, Maria Constança Barreto, que salva de um assalto. Ao longo da viagem, através de pequenos diálogos, avançam “a cada dia um pouco mais no coração um do outro”, até a paz de espírito dela ser irremediavelmente perturbada quando alguns dos soldados de Bento Calheiros decidem roubar os cofres e fugir, levando-lhe o filho mais novo, José, como refém. Os ladrões são capturados, mas os acasos da guerra fazem com que o pequeno passe de umas mãos para outras, frustrando sucessivamente os esforços empreendidos para recuperá-lo. Não só por amor à mãe da criança, mas também porque “estava preso desde há muito à necessidade de sacrifício e sofrimento para limpar as manchas na sua alma”, Bento Calheiros parte em busca de José, numa demanda que o obriga a integrar a Legião Portuguesa do exército napoleónico e a acompanhar as suas movimentações pela Europa.
O autor, doutorado em História pela Universidade Nova de Lisboa, faz uma recriação absolutamente credível da época e dos horrores da guerra. O início do livro, com o marechal Massena a violar a amante, não parece promissor, mas a narrativa torna-se mais envolvente com o desenrolar da odisseia de Bento Calheiros e a conjugação das histórias de várias personagens secundárias, desde personalidades como o Marquês de Alorna e Napoleão, a figuras como o bravo Tenente Laforêt, dos hussardos franceses, ou a cantineira Florencia, uma espanhola de coração enorme. Quando chegamos à Rússia, já a leitura se tornou compulsiva.
Sem Comentários