O receituário deste livro dirige-se, sem risco de engano ou má-fé, a males de ânimo, má disposição ou excesso de formalismo. Servindo-nos de “As Viúvas de Dom Rufia” (Casa das Letras, 2016), de Carlos Campaniço, alcançamos sem esforço terapêutica para uma compreensão da cultura, religião e costumes da sociedade alentejana nos primórdios do Séc. XX. Com humor e por intermédio de uma narrativa com identidade, é-nos servido um retrato da época, generoso em elementos figurativos e predicados do pensamento e comportamento de vários grupos sociais.
Firmino António Pote – ou, se quisermos, Dom Rufia -, natural da aldeia de Fernão Baixo, terras do Baixo Alentejo, onde não passava de um órfão criado por Maria Teresinha – “mulher que enchia a boca de frases sem as reter por muito tempo, irrompendo essas como fruto de uma prenha”, “tia mais mãe” de Dom Rufia, incapaz de conter o elogio às capacidades imaginativas do sobrinho -, viu-se entre muitos ofícios: homem de negócios em Almodôvar, ourives em Moura, médico em Alvito, advogado em Beja.
“Analfabeto de palavras escritas, não o era naquelas que dizia, nem no à-vontade com que manobrava os seus argumentos”, assim granjeando amparos na paixão de Joaquinita, na tentação de Acélia e no amparo de Domitília. Isto sem falar de outras chegadas improváveis e de Armindinho Costureirinha que, no velório de Firmino, se perfilou entre família e as autoproclamadas viúvas do falecido.
Com o seu bigode fininho, tez de sírio, olhos verdes e sorriso bonito, Firmino Pote “jogava como os apostadores mais versados. Tinha fé na probabilidade das apostas múltiplas”. “Contestava, ouvindo. Relativizava, sorrindo”. “Um ser em muitas pessoas”, multiplicado em muitas vidas, para o qual “o amor não era um sentimento, mas uma necessidade como a fome ou a sede”. Teria o dom da ubiquidade?
Representação do Alentejo rural, das suas estruturas sociais e das suas crenças, expondo a estratificação social da época, “As Viúvas de Dom Rufia” retrata de forma contundente o estilo de vida de vários grupos sociais e a forma como fortaleciam a sua posição. Um relato crítico sobre o Portugal desse tempo, abordando temas como a distribuição de riqueza e as precárias condições de vida, a lassidão dos mais incautos, uma sociedade que hipervalorizava o estatuto e a aparência de poder. Dom Rufia materializa a fuga à sina dos campos para a qual, desde cedo, Firmino Pote se achou reservado mas não vencido. Nascido numa família humilde, nunca aceitara tal condição, jurando não se deixar escravizar por tal predestinação.
O mote para a reflexão e ponderação de valores é variado. Desde logo, o protagonista, Firmino Pote ou Dom Rufia, pode ser encarado como ganancioso e trapaceiro ou, pelo contrário, “um homem gentil e importado com as mulheres, num tempo de maridos afirmativos, (…) uma sombra naquele deserto que era a igualdade de géneros, onde nem a palavra nem o conceito haviam sido inventados”.
Pelo entremeio teremos ainda oportunidade de nos cruzarmos com Juan de los Fenómenos, velho chileno, figura misteriosa ao longo de todo o enredo, que “havia entrado pela Galiza, lavrando o Norte com o seu caminhar, descido o Centro sem que nada o prendesse, até encontrar uma pátria para as suas buscas – todos os fenómenos em que a Humanidade se excede e nenhum em que Deus se apresente.” Ou Homero Dente d’Alho, tio de Firmino, “uma caixa em formato de gente, mais fiel do que a dos confessionários religiosos tão comuns e tão sabedores dos pecados e imperfeições do Homem”.
Carlos Campaniço nasceu em Safara, no concelho de Moura. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, serve-se do mundo rural, dele extraindo os temas e contextos das suas obras, centradas nas comunidades e vivências rurais alentejanas, nas sociedades estratificadas de então e no seu imaginário colectivo. O seu livro “Os Demónios de Álvaro Cobra” recebeu o Prémio Literário Cidade de Almada 2012 e “Mal Nascer” foi finalista do Prémio Leya em 2013 e galardoado com o prémio Mais Literatura da revista Mais Alentejo, em 2014. “As Viúvas de Dom Rufia” revela-se uma narrativa com identidade, apetecível e contagiante.
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