Desengane-se o leitor e não se apronte de bom talher, copo para a água e outro para o vinho ou guardanapo de bom tecido. O banquete até pode ser suculento, mas traz sempre uma pitada de desconfiança e medo, já que o veneno pode ser o ingrediente principal. As provadoras foram obrigadas a alimentarem-se com o que de melhor havia, enquanto a maioria dos alemães se debatia por uma batata ou um naco de pão, sem terem leite para os filhos. No entanto, todos iam sobrevivendo e comendo com a mesma dúvida: será esta a nossa última refeição?
“O medo da morte era uma colónia de insectos que formigava debaixo da minha pele.”
Rosella Pastorino ficou obcecada com a histórica de Margot Völk – Rosa Sauer no livro -, e investigou os factos em torno de “As Provadores de Hitler” (D. Quixote, 2020), mulheres alemãs que arriscaram morrer a cada garfada para que o fanático e obsessivo Führer pudesse comer tranquilo, pois temia, a cada refeição, ser envenenado. Durante dois anos, esta e outras mulheres estiveram lado a lado com os SS e a restante comitiva que acompanhava Hitler na sua Wolfsschanze – a Toca do Lobo -, onde o temível mas temente Hitler se barricou de tudo e todos.
“Muitas vezes compartilhar um segredo não une, separa. Se for comum, a culpa é uma missão a que nos devemos atirar de cabeça, porque depois ela evapora-se depressa. A culpa colectiva é informe, a vergonha é um sentimento individual.”
Durante a leitura, talvez não fique constrangido com as reviravoltas da narrativa – são um pouco previsíveis, e também não é um livro violento ou que espelhe a desumanização dos campos ou outros horrores da guerra. Mas ficará com certeza preso a uma certa paranóia, que envolvia o secretismo a que estas provadoras estavam submetidas. E, ainda, a algo superior, que são as descrições sobre a sobrevivência e a pressão a isso associada, tornando este grupo de mulheres num só corpo, uma massa que ora se dilui ora se uniformiza e se torna cúmplice, despertando sentimentos complexos e ambíguos.
“Transgredindo as suas regras, dar-me-ia uma chapada. Nunca fomos nazis, diria ele. Eu protegeria a cara com a mão, consternada, choraria a dizer que não é uma questão de ser nazi, não se trata de política, nunca me preocupei com isso e, além do mais, em 1933 eu só tinha dezasseis anos e não votei. Tu és responsável pelo regime que toleras, gritaria o meu pai. A existência de qualquer um é consentida pelo ordenamento do Estado em que se vive, até a do eremita, compreendes ou não? Não estás imune a nenhuma culpa política, Rosa. (…) Não estás imune a nenhuma culpa, Rosa, repetiria o meu pai.”
Existe também uma dor que acompanha todo o livro, uma dor enorme de quem recorda e se culpabiliza, de quem sobrevive aos outros e não encontra expiação para a sua culpa ou o sofrimento a isso associado. As provadoras tentam entre si apoiar-se e salvar-se, seja com jogos da macaca que lhes conferem a imunidade da infância, seja com cartas de tarot, numa tentativa de adivinhar um futuro ligeiramente sorridente; ou apoiando-se em momentos de dor e perda, seja de filhos antes ainda de eles nascerem ou de maridos e outros familiares desaparecidos para uma guerra sem fim.
“Desaparecido. Não estava escrito na folha que o homem chamado Gregor Sauer tinha as pernas magras, o dedo grande do pé separado do seguinte (…) e que gastava as solas dos sapatos do lado de dentro, que gostava de música, mas não cantarolava nunca, ou melhor, implorava que, por favor, me calasse (…) Na folha não estava escrito que ele de manhã preferia acordar cedo e tomar o pequeno-almoço sozinho, (…) mas logo a seguir ao chá, ele sentava-se na borda da cama e beijava-me as mãos com a devoção com que se beija as crianças. Eles julgavam que o identificavam com aquela série de números, mas não diziam que era o meu marido, portanto não era dele que eles falavam.”
É sem dúvida um livro de sentimentos, explorando a culpa e a perda e o quão dúbia pode ser a honestidade e a traição, juntamente com tudo o que faz falta em tempos de guerra, perguntando que papel têm a intimidade, o toque e o carinho quando até disso nos vemos privados.
“Voltei a pensar que não tínhamos o direito, nós, de falar de amor. Vivíamos numa época amputada, que invertia todas as certezas, desagregava famílias, estropiava qualquer instinto de sobrevivência.”
Sem Comentários