Num cenário grotesco de perfumes escatológicos e deficientes guardados no sótão, uma família abre-se, de A a Z, aos olhos (e nariz) do leitor como quem consulta entradas num dicionário, tendo ainda de recorrer ao prontuário. A linguagem é a personagem de destaque, e isso faz de “As Primas” (Alfaguara, 2023) um livro tão fora de formato que não cabe bem na prateleira, mas que garantirá um lugar no pódio literário a Aurora Venturini, na altura no alto dos seus 85 anos.
“Mas já pus vírgula e ponto e a cabeça já me faz burumbumbum e eu vou apanhar ar lá fora e volto de seguida antes que apareça a Petra cujas feições mudaram devido á iracúndia que sofre pela injustiça que fizeram a Carina e pior ao bebé embora eu não tenha compreendido como é que a criatura entrou na barriga da minha prima e disse a Petra que sim que entendia e ela de seguida garantiu que resolveria a balbúrdia de tanta injustiça com o famoso sessoral que tanto me angustiava e que os senhores que fazem os dicionários esqueceram ou então é algum vocábulo novo porque agora existem muitos vocábulos novos.”
É neste ritmo desenfreado que a linguagem cresce, tal como cresce Yuna, embora o cérebro (supostamente) se desenvolva mais lento que as maminhas. Algo compensado largamente pela desenvoltura que apresenta na sua arte, onde se revela um talento, completando a inteligência tosca que a caracteriza e que ela subscreve – e se descreve – como um disfarce, muito útil para vomitar tudo o que lhe apetece, deixando sempre o leitor em dúvida com este narrador-locomotiva sem pontuação.
“(…) e eu era qualquer coisa como um ser estranho e dependente das ordens que aquelas formas ou figuras davam tiranicamente e se eu não lhes respondesse mordiam o cérebro e o coração com dentes de vidro quando a vivência tinha significado e exigia ser vertida numa tela ou num cartão.”
A escrita também verte e transborda, ultrapassando pontos e vírgulas, extravasando com palavras caras que vai consultando no dicionário para fazer jus à família peculiar, disfuncional e tóxica que a envolve, e que faz dela um personagem tão avassalador como a forma como encontrou para narrar a sua história – e não estamos nós a ver-lhe os cartões e telas que gritam e gemem, retirando-a do anonimato da deficiência e dos sentimentos de repulsa e obsessão familiar, onde as regras gramaticais de uma mãe professora não substituíram as regras de um ponteiro em riste, rasgando qualquer traço de afecto mesmo da pequena prima Petra.
“Se não fosse meio deficiente não precisaria de descansar mas já disse que cada ponto ou vírgula imprescindíveis (idem) me enchem a cabeça de visões e modos de pensar incríveis que me ultrapassam e dói-me o cérebro, acho que é o cérebro que me dói e o cérebro é o que a minha inútil família tem de mais doente e fraco e eu não devia expressar-me assim, mas às vezes gostava de ser totalmente normal. Mas cada um é como veio ao mundo e é preciso aguentar (…).”
Um livro que parece surgir tal como veio ao mundo: sem regras gramaticais, numa escrita saída da ponta de um pincel que cuspiu um universo disfuncional e delirante, onde a deficiência das primas justifica a constante selvajaria e violência que emoldura e faz cerco à vida de todas estas mulheres, onde os homens são sombras que as perseguem e precisam de ser expulsos para não transbordarem mais o vaso menstrual das mulheres e perpetuarem uma família que não traz nada de bom. Palavra de narradora. Não fosse a sua morte uma efeméride de 2015, seria caso para dizer: longa vida a Venturini. Queremos mais livros assim.
1 Commentário
Estou a gostar muito. Acho excelente a forma como o livro é construído.