Salut caro Michel,
Permite-me que te trate pelo primeiro nome. Afinal de contas, conhecemo-nos… perdão, conheço-te há já alguns anos. Sim, posso só agora ter lido “As Partículas Elementares” (Alfaguara, 2022), esse romance que te celebrizou no final do século passado, porém sinto que já tive a oportunidade de privar contigo em outras ocasiões. Eu, o leitor zé-ninguém e tu, o famoso Michel Houellebecq, o enfant terrible da literatura e, diz quem sabe, talvez o mais importante escritor europeu da sua geração.
Em 2016, a Alfaguara fez o favor de me chamar à atenção para a tua “Extensão do Domínio da Luta”. Um ano depois levaste-me a “Lanzarote” mas, confesso, sinto que ficámos a meio caminho. Curiosamente, foi no decorrer das eleições presidenciais francesas de 2017 que consumi avidamente o teu thriller político (e polémico) “Submissão”. Em 2021, quando a COVID já dava tréguas, proporcionaste-me uma overdose de “Serotonina” e, ainda em convalescença, o meu apetite voraz por mais Houellebecq levou-me à compra compulsiva de “Plataforma” e “A Possibilidade de uma Ilha”. Recordo-me que, na altura, não encontrei a tradução portuguesa de “As Partículas Elementares” e, bem vistas as coisas, ainda bem, pois valeu a pena esperar até hoje. Mas já lá iremos…
Admito que estou, de momento, a tentar ganhar coragem para atacar o teu mais recente trabalho, “Aniquilação”, um evidente calhamaço que, diz-me a crítica especializada, é estranhamente delicado, sensível e esperançoso. No entanto, eu desconfio, Michel, porque ao longo de quase uma dezena de romances, contaste-me uma história bem diferente: embalaste-me com a estranha canção da amargura, melancolia e niilismo; ensinaste-me a enxergar, com cepticismo, as transformações sociais, económicas e sexuais em curso; preparaste-me para o declínio da civilização humana e treinaste-me na arte da observação da decadência moral no ocidente. Enquanto isso, atraíste milhões de leitores com a originalidade das tuas composições provocatórias, a elegância dos teus aforismos e a impetuosidade das tuas ideias, que, acredites ou não, apelam ao consumo feroz de qualquer coisinha que tu escrevas.
Sei que tens também uma paixão pelo grande ecrã, porém acho que o teu precioso tempo estará melhor entregue à arte da escrita. No entanto, quero que saibas que assisti à tua primeira aventura na representação, em “Experiência de Quase-Morte” (uma boa oportunidade para ter ver de calções de licra e pouco mais). Vi, com maior entusiasmo, “O Rapto de Michel Houellebecq” e estou a fazer os possíveis para evitar o filme que realizaste em 2008, pois dizem-me que não é grande coisa (e estou a eufemizar, lamento).
Bem… estamos ainda no Verão, portanto voltemos à tua praia — a literatura. Como escrevi no começo desta carta (sei que não és muito dado a louvores, portanto perdoa o panegírico inicial), foi este ano publicado, pela Alfaguara, “As Partículas Elementares”, aquele livro que te tornou, naturalmente, num fenómeno literário pelo mundo fora. Digo “naturalmente” porque aí demonstraste o que és, de facto, capaz de escrever. As tuas dissertações frondosas sobre genética, ácaros, mecânica quântica, erecções e biologia molecular não deixam nenhum leitor indiferente. A trama do livro é imprevisível e a tua prosa efervescente o suficiente para chegar aos registos do banal, científico, erótico, trágico-cómico e, no final, obter uma obra impecavelmente consistente. Não é para todos, hem, Michel?
Sim, bem sei que não te importas com nada disto e que preferes voltar a atenção para o teu copo de vinho tinto e o teu Philip Morris (é justo), contudo fica sabendo da razão pela qual eu sigo a tua obra com tanta atenção, querido Michel. Embora te considere um escritor brilhante, não és exactamente uma divindade literária, sabes? No fundo, reconheço que até nem sejas flor que se cheire, mas a tua opinião perturbadora e destemida, assim como a tua escrita cínica, arrasadora e inteligente tornaram-te, para o bem e/ou para o mal, num tesouro literário.
Que continues a fazer o que fazes tão bem durante muitos, muito anos. Au revoir, Michel, até breve, espero.
Atentamente,
Um admirador
João Rosa Miranda
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