Em “As Longas Noites de Caxias” (Planeta, 2019), Ana Cristina Silva confirma a sua sensibilidade para temas fracturantes, os quais recorrentemente traz para as suas obras, bem como a extrema habilidade com que os desenvolve, numa narrativa límpida e impactante. Serve-se de uma base factual, fiel e generosamente fundamentada em estudo prévio, o que se agradece; adiciona a cada personagem mecanismos psicológicos que nos convencem do acesso aos recantos mais recônditos das suas personalidades; remata com uma caracterização épica de acontecimentos e figuras que a memória coletiva agradece.
“As Longas Noites de Caxias”, o seu 13º romance, representa um regresso necessário às décadas de 60-70, a Portugal, um país macerado pela prolongada vigência de uma ditadura e a um povo que conseguiu sobreviver ao isolamento. Representa, ainda, a evidência do poder da resistência, da não desesperança, da luta sob as suas mais variadas formas, da recusa em deixar de pensar, questionar e acreditar.
Através de Laura, a jovem que deixara Mértola para estudar direito em Lisboa – contrariando a sina de prosseguir uma vida ditada pela sobrevivência da terra e do serviço doméstico aos outros -, viaja-se ao pensamento e luta da resistência estudantil. Percorrem-se os lúgubres corredores, salas e tempos de Caxias, dos interrogatórios e das mais variadas formas de exercício da tortura e do poder. Percorre-se, igualmente, a capacidade de resistir, de permanecer fiel às convicções, à certeza da não delacção, às réstias de dignidade. Para consegui-lo, Laura, que acabara presa em Caxias e exposta a múltiplas formas de interrogatório e de tortura, “pensava em si como uma personagem de um livro, cujas falas deveriam permanecer em branco”, aceitando as ofensas como naturais, procurando sentir-se invisível, inviolável, guiada pela bússola do silêncio.
Mais tarde, à resistência e à sobrevivência segue-se outra luta, a procura de outra forma de liberdade, a da memória e do trauma pois, “apesar de terem sido libertados, a memória mantinha-os encarcerados”. Trata-se de ser capaz de voltar a acreditar na bondade, de se libertar dos fantasmas, na possibilidade de ceder e fraquejar ao sofrimento sem que tal represente trair.
“A vigilância praticada pelos agentes da PIDE era um serviço de Estado Português. O seu propósito secreto era o de que as pessoas deixassem de ter pensamentos para se transformarem numa frágil teia de espírito permeável ao terror.”
Maria Helena ou Leninha, como era apelidada entre colegas, “um nome doce e carinhoso para uma mulher excessiva na voz e nos gestos”, conseguira chegar a chefe de brigada na PIDE. Jamais uma mulher ascendera a tão alto posto, e era sua intenção chegar a inspectora. Acreditava-se abençoada depois de ter sido, na infância, beijada por Salazar. O seu mundo era Caxias, local onde o seu coração exultava, espaço que lhe permitia não se sentir sozinha, construindo um mundo onde quase tudo fosse previsível, ordeiro e feliz. Revelava-se uma mulher bem-disposta, de gargalhada fácil, contrastante com as ameaças sinistras que representava para os presos, dos quais fazia caricaturas animadas.
Em Tribunal Militar, com emoções indecifráveis, Leninha reitera a fidelidade ao dever, ao serviço do país, afirmações que repetiu perante vítimas e anónimos sem sinais de inquietação, arrependimento ou remorso. “Afinal, de que a acusam? De obedecer aos seus superiores? A sua tarefa era simples: obter confissões, respostas concretas daquela gente que queria destabilizar o país, identificar as suas ameaças. Como conseguiria cumprir as funções que lhe competiam se não recorresse a alguns bofetões?”.
Ana Cristina Silva, psicóloga, investigadora e docente académica, associa às evidências dos acontecimentos e à natureza estática da história a oportunidade de nos alertar para o risco de sermos prisioneiros sem grades, mas também heróis sem armas. Alerta-nos, ainda, para a ameaça do esquecimento, da insignificância da justiça formal, num apelo a que cada um se assuma como mensageiro da resistência e da gratidão aos que viveram as longas noites de Caxias.
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