“As Inseparáveis” (Quetzal, 2021), de Simone de Beauvoir, livro inédito até há poucos anos, ficciona a amizade entre Simone e Zazá que, na narrativa, assumem os nomes de Sylvie e Andrée, numa tentativa de Beauvoir resgatar do esquecimento uma amiga cujos condicionamentos da época deixaram morrer, num misto entre o sufoco e o tédio por ser mulher e não poder ganhar asas.
Simone expõe não apenas as fragilidades da amiga e os condicionamentos típicos impostos às mulheres naquela época, mas também as suas próprias fragilidades e a dependência desta amiga, e o quanto isso terá influenciado o rumo da sua própria vida. Talvez por isso tenha sido um relato inédito até tão tarde, tendo Simone recebido, nas primeiras vezes em que tentou editá-lo, conselhos para não o fazer, nomeadamente de Jean Paul Satre, com quem foi casada.
“Não respondi nada. Esperava tanto por aquela noite! Dizia a mim mesma que estaria finalmente no âmago da vida de Andrée, e ela nunca me parecera tão distante: não era a mesma Andrée desde que o seu segredo tinha um nome.”
O segredo era a paixão e, quanto aos despertares da adolescência, provas inoportunas de que as meninas estavam a crescer, e que precisavam de um outro tipo de controlo por parte das suas famílias. Outro despertar foi também o de Sylvie para com o fascínio que sentia por Andrée, já que parte dessa admiração se prendia com uma independência e uma personalidade que ela identificava na amiga, e que começou a ganhar outros contornos com o revelar da sua própria maturidade.
“Estava com medo. Não ousava agarrar a prancha nem implorar muito alto; mas temia que o baloiço desse a volta, ou então Andrée ficasse com vertigens e soltasse as cordas: estava a ficar com náuseas só de vê-la oscilar de céu a céu como um pêndulo enlouquecido. Porque não parava de balouçar-se? Quando passava por mim, muito hirta, no seu vestido branco, estava com um olhar fixo e os lábios cerrados. Talvez lhe tivesse passado algo pela cabeça e já não conseguia parar. (…) Não, não tentara matar-se; esse assunto estava arrumado; mas quando recordava o seu olhar fixo e os seus lábios cerrados, ficava com medo.”
A relação entre as duas meninas, as inseparáveis, faz lembrar a tetralogia de Elena Ferrante quando pensamos na dependência de Lila por Lenu, especialmente por oscilar entre uma admiração pasmada e uma independência que, posteriormente, cria um fosso nessa mesma dependência – ainda assim, a amizade permanece por muitos anos, intemporal.
Esta amizade tentacular expõe também diversos temas e compõe, por camadas, a interpretação desta narrativa editada postumamente. Não é um livro simples ou tranquilo. É um relato que questiona a época, o papel da religião, e que levanta dúvidas diversas, como a importância da individualidade, mas também da partilha, da confidência e da amizade na formação de cada mulher, sublinhando a necessidade de um “espaço pessoal vital” que, aqui, se vê sufocado pela família, a religião, a sociedade e o que é esperado que as mulheres assumam.
“Pobre Andrée! Todos querem a sua salvação. E ela deseja tanto ser feliz na Terra!”
O lado solitário do crescimento de Andrée revela características da própria amizade, e também a forma como a outra metade pensa e se desenvolve. Também a sós Sylvie crescia – cresciam ambas em silencio. Uma cumplicidade e partilha onde não parecem alcançar a liberdade, já que existe uma formalidade própria de classe que espartilha a amizade entre as duas meninas-mulheres.
“– Repreendeu-a?
– Disse que me perdoava, mas quanto ao resto era entre o meu confessor e eu.
André olhou para mim muito séria.
– Temos de entendê-la. Tem a seu cargo a minha alma: também ela por vezes não deve perceber o que Deus quer dela. Não é fácil para ninguém.
– Não, não é fácil – disse eu sem convicção.”
A certeza que fica deste relato é, sem dúvida, a importância da religião na formação destas duas crianças, e a da amizade para o seu desenvolvimento enquanto mulheres, misturando espiritualidade, confiança, adoração, o amor e o corpo (esse que o catecismo diz que não se vende, mas que o casamento a isso obriga), a partilha de preocupações, o apaziguamento e a rendição – mas, também, um questionamento que se assume tão constante quanto tudo o resto.
“Revi Andrée naquela capela da clínica, rodeada de velas e flores. (…) O cabelo estava mais longo e tombava-lhe em madeixas lisas sobre o seu rosto lívido e tão magro que mal lhe reconheci as feições. As suas mãos, de unhas compridas muito pálidas, cruzadas sobre o crucifixo, pareciam friáveis, como as de uma múmia antiga. (…). Obscuramente, compreendi que Andrée morrera sufocada por aquela brancura.”
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