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Arquipélago de Escritores, Deus Me Livro
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Arquipélago de Escritores começou com boas abertas

Por Pedro Miguel Silva · Em 15/11/2019

“Um território historicamente literário”. Foi com este poético cartão-de-visita que Nuno Costa Santos escancarou as portas da segunda edição do Arquipélago de Escritores, o encontro literário que, entre os dias 14 e 17 de Novembro, tomará conta dos Açores – e, sobretudo, da ilha de S. Miguel.

Na sessão de abertura, o organizador do Arquipélago falou da literatura como algo em que os açorianos são fortes, manifestando a vontade de que este seja, a curto prazo, um encontro de todas as ilhas: “Temos de ser universais dentro dos Açores. As ilhas têm de dialogar, os eventos devem ter lugar nos sítios mais recônditos”.

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Do programa, Costa Santos fez questão de destacar os dois escritores homenageados nesta edição: Santos Barros e Vamberto Freitas. Do primeiro, que recentemente teve a sua obra reeditada pela Imprensa Nacional graças ao empurrão de Jorge Reis Sá, Costa Santos disse ser um dos nomes mais importantes da literatura açoriana a partir dos anos 60 e 70, “um suplementarista nato com um lado provocatório”. Alguém que, com o desígnio de fazer pensar na questão da literatura açoriana, chegou mesmo a criar dois heterónimos para discutirem o tema entre si. “Fazer versos dói”, documentário realizado por Sara Leal que foi buscar o título a um dos seus poemas, será exibido neste Arquipélago de Escritores, simultaneamente em três ilhas. Já em Março de 2020, uma exposição a ter lugar na Biblioteca Luís da Silva Ribeiro dará a conhecer a vida e obra de Santos Barros.

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De Vamberto Freitas, Costa Santos falou numa “figura sem a qual a literatura nos Açores não seria a mesma coisa. O mais generoso de todos, que mais tem pensado a literatura no imaginário açoriano”. Destacou também o seu papel de guia das novas gerações, antes de voltar a falar dos Açores como um território particular: “O nosso isolamento espicaçou a nossa necessidade de nos cultivarmos, de escrevermos muito, de cuidarmos do nosso jardim literário”. Costa Santos deixou ainda um apelo aos leitores e às comunidades de leitores da ilha para os dias que se seguem: “encham as salas e espalhem a vossa curiosidade”.

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Vamberto Freitas, que marcou presença nesta sessão de abertura, recuou duas décadas para lembrar o tempo em que falar de cultura açoriana era quase motivo de cadeia, uma afirmação entendida como manifesto político. Sobre este reavivar da cultura açoriana, disse que chega quase sempre do lado de fora, tenha sido dos Estados Unidos ou do continente português.

Recordou os tempos em que, quando vivia nos Estados Unidos, foi despertado por uma professora especializada em literatura brasileira nordestina: “Vais ter que voltar a casa, lendo os livros da tua terra”. Foi aí, percebendo que a escrita nessa geografia era feita à volta da ideia do que era ser negro, ser judeu ou ser sulista, decidiu que queria escrever sobre o que era ser português dos Açores. A terminar, manifestou orgulho na nova geração de escritores açorianos, tal como na surgida nos anos oitenta, que então foi para si foi algo de misterioso: “A ideia que tinha era a da indiferença, do esquecimento da terra de origem. Eu próprio fiz isso na América durante uns anos. Haverá sempre alguém que redescobre as suas raízes e origens e que vai valorizá-las”.

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A terminar, José Manuel Bolieiro, Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada, agradeceu ao “ideólogo” Nuno Costa Santos, que há cerca de um ano atrás o havia colocado perante uma dúvida: seria este Arquipélago “um risco que é um perigo ou uma oportunidade?”. Veio, afinal, a revelar-se “um risco de oportunidade” que permitiu “celebrar uma identidade, de povo e da nossa historia, da universalidade e da nossa especificidade. Uma distinção que serve não para separar mas para realçar”.

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E para que serve, afinal, a poesia? A pergunta, lançada por Carlos Bessa – que apresentou o tema como “pertinente e necessário” – aos poetas Daniel Gonçalves e Leonardo, foi suficiente para aquecer o ambiente, mas a via civilizada acabou num cordão humano de intervenções que trataram de colocar a poesia num pedestal.

Para Daniel Gonçalves, a poesia é um meio de conhecer outros mundos e pessoas. Admitiu mesmo ter feito batota, lançando a pergunta no facebook para obter uma ajuda extra, que surgiu, nos comentários, como uma própria transformação da pergunta em poesia. Um exercício onde muito boa gente defendeu a poesia como um medicamento eficaz, sobretudo quando tomado à noite sem abusar das doses.

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Poesia que pode tomar diferentes formas, sejam os fados da Aldina Duarte ou o jardim nomeado a partir de Antero Quental, que continua vivo muito empo depois do seu desaparecimento. Para Daniel, a poesia será em boa parte uma luta contra o esquecimento, uma forma de tornar a mortalidade menos mortal. Um misto de desejo de permanência e de criação de laços.

“Em termos de utilidade, a poesia já serviu para tudo, da guerra ao amor”. Partindo deste pressuposto, Leonardo decidiu fazer antes uma lista de coisas que a poesia não é (ou não deveria ser): um pacote ideológico, o espólio de um coleccionador de medalhas, um desporto de alta competição, uma fita que sirva para medir e distinguir entre grandes e pequenos. Defendendo que a poesia é algo que está sempre em movimento e que escapa a qualquer tentativa de fixação, disse não estar interessado em saber para que serve a poesia, e que provavelmente esta não servirá mesmo para nada. “O caminho levou-me para aqui, poderia ter-me levado à taberna. Normalmente divido-me entre estes dois lados”.

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Carlos Bessa referiu a poesia como o motor que conferiu a universalidade a Portugal, através de êmbolos como Camões e Pessoa, uma universalidade da escrita em português que pertence, também, a diferentes geografias, de Cabo Verde a Moçambique, do Brasil a Timor. Logo de seguida, Leonardo atira para cima da mesa com uma frase a que não conseguiu atribuir autoria – “Se querem coisas úteis procurem sanitas” -, abrindo uma acesa intervenção popular perante a ideia que ficou a pairar de que a poesia não serve para nada.

Alguém defende que, num mundo dividido entre negócio e ócio, a grandeza da poesia poderá mesmo ser essa: a de não servir para nada. Vamberto Freitas, recusando entrar em modo Fahrenheit 451 e fazer uma queimada de versos na varanda, pergunta: “Mas como saberíamos da história da humanidade se não fosse a poesia?”.

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Sucederam-se as intervenções e as ideias sobre o que é, afinal, a poesia: “A verdade escondida das coisas, capaz de mostrar as leis do mundo e de nos próprios”. “Uma transformação e activação dos sentidos”. “Serve a palavra e serve o belo. É o lugar do belo”. Daniel entra em cena e devolve alguma calma através do humor: “Costumam muito pedir-me para fazer uns versos para convites de casamento. E sobretudo baptizados”.

A última palavra coube a Nuno Costa Santos, que defendeu que “toda a arte e egoísta. E ainda bem que assim o é”. Quanto à generalização da utilidade, o melhor será ter cuidado. Afinal, “há vários tipos de poesia, como a de escárnio, a cómica, a metafórica, uma para resolver problemas psiquiátricos, épica, teatral, até mesmo para quem tem diversos eus dentro de si”. Valeu a animada conversa de café, que mostrou que quem lê um poema acrescenta-lhe sempre um verso seu.

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O primeiro dia de Arquipélago encerrou com uma espécie de entrevista a Dulce Maria Cardoso, conduzida pela jornalista Teresa Canto Noronha, onde se discutiu a verdadeira importância da ficção em geral e no feminino – “Temos de estar no fio da navalha, dizendo sempre a coisa certa para ganhar o respeito do par. A literatura ainda é dos homens porque o mundo do pensar ainda é dos homens” -, o gosto pela invisibilidade – “Uma das características que mais aprecio” -, a literatura como uma manipulação consentida entre escritor e leitor – “A verdade é sempre muito longa e desinteressante. Temos de procurar encontrar a melhor mentira que sirva a verdade. A literatura é isso” -, marcos como Madame Bovary, o Processo de Kafka ou um certo Crime e Castigo – que serviram para fixar respectivamente o tédio, a burocracia e a culpa -, de um dos grandes desafios actuais – “fazer coincidir o eu digital do eu real. O eu digital e muito parecido com a ficção” -, da mãe que ainda sonha com que Dulce arranje um bom emprego, da “escrita pouco interessante” de Knausgaard – que parte da ideia moderna de escrever com base em factos reais -, da importância tão grande ou ainda maior do tempo da não escrita – “Ter uma ideia é quase o trabalho de uma vida” -, do engodo que nos impingiram de termos de trabalhar oito horas por dia a produzir que nem doidos, da série Sete Palmos de Terra como construtora de auto-estradas para o futuro – focando temas como a homossexualidade ou a morte e apanhando o espectador na sua distracção – ou, fechando o ciclo e abrindo portas ao segundo tomo de Eliete, da herança deixada por Salazar, que está ainda muito presente na sociedade portuguesa – “Somos todos herdeiros de Salazar”.

O Arquipélago de Escritores continua por S. Miguel até dia 17 de Novembro.

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Pedro Miguel Silva

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