Publicada originalmente com o selo da editora belga Casterman, entre Março de 2006 e Outubro de 2014, a série Armazém Central foi uma colaboração a quatro mãos, algo bastante raro, entre dois consagrados da banda desenhada europeia: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp. Composta por nove volumes, a série tem conhecido edição nacional pela Arte de Autor, editora que, em 2021, fez chegar às livrarias o álbum que reúne os volumes 6 e 7: “Armazém Central: Ernest Latulippe + Charleston” (Arte de Autor, 2021).
Com a partida de Marie para Montreal, depois de um acontecimento que numa aldeia tão pequena quanto Notre-Dame-des-Lacs virou escândalo nacional, o sentimento dominante é a pura desorientação. Os homens estão à nora, incapazes de perceber como poderão, na ausência de Marie, voltar a ter no Armazém os produtos necessários para a vida do dia a dia, vendo-se incapazes de negociar créditos com os fornecedores. Quanto às mulheres, agora sem o seu alvo preferido por perto, vão-se perdendo entre a saudade, a fúria e o lamento: “Marie! Marie! Bolas, não somos capazes de passar dois minutos sem ela?”. Uma desorientação crescente a que se juntam ainda pontes caídas e colheitas por fazer, o que a certa altura irá transformar Notre-Dame-des-Lacs na irredutível aldeia dos gauleses durante “O Adivinho”, álbum de Astérix e Obélix que levou os destemidos gauleses ao limite da sua sanidade.
Quanto a Marie, descobre em Montreal “a grande diversão na cidade… aquela que atordoa e depois embota os espíritos”. Ao regressar a Notre-Dame-des-Lacs, Marie traz consigo um pouco de Montreal, num processo de auto-conhecimento que a leva a encarar a existência de forma temerária – “a minha vida é a minha vida!” -, levando esse inconformismo a penetrar lentamente na aldeia, que vai pedindo à costureira Philoméne para recriar os últimos modelos dos catálogos que Marie trouxe consigo de um mundo para si distante.
Um processo de afirmação que, no caso de Serge, permanece ainda em lume brando. Tendo aceitado aquilo que é, não foi ainda capaz de o reconhecer perante os outros. Ainda assim, Serge e Marie parecem ter reencontrado a cumplicidade que os unia, antes de Marie ter percebido que os seus sentimentos não encontrariam eco em Serge: “Dormir contigo é um pouco como ter à frente um doce que não se pode comer”.
Este álbum, que tem como um dos narradores a voz além-túmulo do ex-marido de Marie, centra-se também na história dos irmãos Latulippe, que se vêem – um mais que o outro – em sérios apuros depois de uma caçada interrompida por um urso. Um acontecimento que irá recuperar o espírito de união da aldeia – e despertar a libido de Marie -, que terá ainda de escolher, de forma despocrática – apenas os homens têm a palavra -, um novo presidente. Ainda assim, não falta em Notre-Dame-des-Lacs o trabalho, a festa e a animação, ou um novo animal de estimação, que tem tudo para se tornar na mascote da aldeia.
Uma vez mais, Régis Loisel e Jean-Louis Tripp transformam esta banda desenhada num festim. Há páginas duplas de vinhetas silenciosas, onde cada uma delas se lê como uma curta-metragem, quadros vivos que, como se lê na contracapa, recordam a espaços os filmes de Frank Capra. O final, que coincide com a chegada do Inverno e a partida dos homens, mostra que as comadres coscuvilheiras terão muito por onde pegar no próximo – e derradeiro? – volume. Bravo (dever ler-se brrávô)!
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