No vasto domínio que podemos designar como “ficção especulativa”, um grupo particular de textos detém uma capacidade especial para nos desassossegar: aqueles que começam por representar a mais comum das realidades, mas cedo abrem nela fissuras que se vão expandindo, deixando entrever possibilidades inquietantes.
Os romances que Mafalda Santos tem vindo a publicar – após uma tremenda estreia literária com uma colectânea de contos de terror (ler crítica) – integram-se neste grupo. O mais recente destes thrillers surrealistas, como a autora os classifica, intitula-se “Aquilo que o Sono Esconde” (Suma de Letras, 2025), e explora de forma absolutamente criativa e fascinante as incógnitas persistentes do mundo do sono e dos sonhos.
O ponto de partida é o quotidiano de um corrector de seguros chamado Jaime, cuja missão de vida é poupar dinheiro à sua agência. Apreciador da ordem e da exactidão, relaciona-se melhor com os números do que com qualquer ser humano, considera-se superior aos que o rodeiam e mantém uma relação desequilibrada com uma namorada demasiado submissa. Quando o conhecemos, está especialmente empenhado em evitar pagar a indemnização devida a uma mulher que ficou tetraplégica num acidente rodoviário. Porém, depois da festa de Natal da empresa, que suporta a contragosto, Jaime vive “a noite mais estranha de toda a sua vida”, que em poucos dias se transforma num pesadelo.

O sono é suprimido e a fome torna-se avassaladora. O rosto reflectido pelo espelho parece-lhe diferente, sem que perceba porquê. A consciência do tempo e do espaço estilhaça-se. Um artefacto materializa-se, um trauma é reavivado e as alucinações sucedem-se – mas serão realmente alucinações, ou vislumbres de outras dimensões? A busca por explicações racionais falha, a demência da mãe aumenta o pavor da loucura, e a mulher paralisada impõe-se, manobrando Jaime em nome das seus próprios interesses secretos e conduzindo-nos a outros livros dentro do livro.
A par da criatividade, é brilhante a maneira como a autora entrelaça e esclarece vários mistérios dispersos ao longo da intriga, integrando-os no todo coerente do universo que concebeu – isso para não falar da forma como prende a nossa atenção às perturbações de corpo e mente de um protagonista que, durante grande parte da narrativa, é muito pouco simpático, mostrando-nos como ele se transforma num homem diferente. Incapaz de continuar no limiar da vertigem e não desejando voltar a ser como era, Jaime enfrenta finalmente algo que sempre sentiu não fazer sentido na sua vida, chegando a uma descoberta surpreendente.
Uma obra com um final assombroso, que nos recorda que “há fantasmas que são assim, enfiam-se por todas as reentrâncias da escuridão, esvoaçando entre e através de nós, ecoando nas nossas costas quando caminhamos sozinhos. Podemos mantê-los presos a uma distância segura durante algum tempo, mas não nos devemos iludir demasiado. Os grilhões que os prendem são frágeis e quebradiços e num instante aí estão eles novamente, fantasmas espontâneos e renovados, regressados dos campos enevoados dos sonhos e da memória”.
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