Em 2008, num jornal de Berlim, foi publicada uma pequena história em banda desenhada, um pouco ao estilo das tiras cómicas existencialistas, na qual Flix recuava até aos seus sete anos para, através de tanques de brincar e da percepção iludida da infância, transportar o leitor aos tempos em que a Alemanha se encontrava dividida e um muro, gigante e guardado a munições e forrado com arame farpado, separava Berlim em duas metades.
Após essa estreia, Flix percebeu que tinha aberto um portal no tempo, discutindo o tema com amigos e conhecidos, acabando por criar uma narrativa histórica a várias vozes – e situada em ambos os lados do muro – que se estendeu por mais de trinta histórias que foram publicadas a um ritmo mais ou menos regular – e que apareceram mais tarde reunidas em “Aqui já houve algo..” (Polvo, 2020), um álbum que chegou às livrarias nacionais este ano com o selo da Polvo.
Neste exercício colectivo de revisitação, tanto descobrimos a censura e a falta de opinião livre como os diferentes cheiros que deixaram de se distinguir depois da união. As horas passadas em fila para atravessar a fronteira, até um lugar onde nunca era bem de dia, as fábricas se assemelhavam a gigantes quixotescos e as pessoas pareciam movidas por um telecomando. As formas de intercâmbio monetárias e os planos de fuga arrancados às páginas da história grega. O medo de cometer erros e de dizer as coisas erradas, bem como a tremenda dificuldade de, no acto de recordar, distinguir entre as memórias próprias daquilo que foi vendido nos media. Os interrogatórios, a tortura e a incapacidade de pedir desculpa. O silêncio como forma de esquecimento. O desejo de inverter a visão do mundo, que não terá para quase toda a gente correspondido às expectativas criadas. Ou o sentimento de insegurança, que para muitos continuou mesmo depois de o último tijolo do muro ter sido arrancado.
O trabalho gráfico de Flix é de excelência, notando-se a inspiração e a presença da escola franco-belga. Cada uma das histórias tem uma cor diferente e predominante, e há mesmo algumas com um toque especial, seja o desenho em papel que parece almaço ou em folhas pautadas que surgem de repente, composições a partir de pequenas polaroids, a surpresa de um inesperado desdobrável ou o recurso ao papel milimétrico, para a construção de uma casa a partir da primeira pedra.
Um livro ilustrado, qualquer coisa como uma novela gráfica feita de contos visuais narrados por “testemunhas do tempo“, que mostra a importância de resgatar e de preservar a memória, tanto a individual como a colectiva.
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Felix Gormann, aliás Flix, nasceu em 1976 na cidade universitária de Munster (Alemanha). Estudou design de comunicação. Vive e trabalha como ilustrador freelancer e autor de banda desenhada em Berlim. É um dos mais importantes autores alemães da actualidade e conta com mais de uma trintena de livros publicados. Os seus trabalhos receberam numerosas distinções, entre as quais os conceituados Prémios “Max und Moritz” e “PENG!”. Discípulo da escola franco-belga de Banda Desenhada, Flix é um mestre dos traços simples e da narrativa curta. Com a sua despretensiosa genialidade, tem ajudado a aumentar o rol de autores que adoptaram, com sucesso, a autobiografia como mote para as suas histórias. Em 2018 desenhou um especial “Spirou & Fantasio”, com o título Spirou in Berlin.
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