Nascido em Praga no ano de 1875, Rainer Maria Rilke ingressou em criança numa academia militar, tendo mais tarde estudado Direito em Munique e Berlim. No ano de 1897, experienciou a sensação de estar no sítio certo à hora certa, tendo conhecido Lou Andreas-Salomé, que o introduziu nos círculos aristocráticos e artísticos e lhe permitiu seguir um caminho que o veio a tornar um dos grandes da literatura. E, se entre as suas obras mais conhecidas está sobretudo a poesia, com títulos como “Sonetos a Orfeu” ou “Elegias de Duíno”, Rilke deixou a sua marca também na prosa, ainda que esse legado não tenha sido tão marcante ou conhecido.
Publicados em 1898 um ano depois de ter conhecido Andreas-Salomé, as novelas e esboços de “Ao Largo da Vida” (Ítaca, 2017) encontravam-se, até agora, inéditos em Portugal, naquele que foi o primeiro livro de contos de Rilke. Em cada um deles existe uma linha comum: a da proximidade com a morte ou a doença, mas há também um aguçado espírito de observação, uma ironia requintada e uma forma poética de olhar para a realidade e o que se esconde por detrás dela.
Em Festa de Família, o conto inaugural, celebramos à mesa o aniversário da morte de Anton Von Wick, numa casa “onde era grande vergonha ser cadeira (…) onde nunca ninguém tivesse morrido“. Através de um velho mordomo, que representa a encarnação de todos os Von Wick já falecidos, enfrentamos a inevitabilidade da morte, tratando de escolher um cadeirão confortável; O Segredo é talvez o conto mais assombroso, que conta a história de duas irmãs inseparáveis, Rosine e Klothilde, uma de “cabelo ralo e branco” e a outra com a “cabeça severa, tensa e estranhamente negra“. Há muitos rumores sobre o que terá levado estas duas mulheres a partilharem uma vida, “mas o véu não se rompe“. Há, percebe-se, um segredo que Rosine quer arrancar a Klothilde, que toma como missão descobrir o que esta esconde nas “profundezas desta mina de ferro“, referindo-se a um cofre. Um conto onde habita um ódio auto-imposto, uma sede de vingança e sorrisos escarnecedores – mas, acima de tudo, um sonho que caminha a passos largos para se transformar em escombros; em Dia da Morte assiste-se à chegada e à percepção da morte ao celebrar-se a morte alheia, num dia que começou luminoso para se tornar pálido, estendendo-se e alongando-se “amplo e sóbrio sobre o soalho“; a rematar temos Unidos, um magnífico retrato da religião: “uma nostalgia que cruza as mãos, em vez de abrir as asas“. Um outro lado de Rilke que vale bem a pena ler.
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