“Ele vai enumerando
as tentações
em que ambos sempre caem
entre o mal e o pecado
a nudez e o desejo
o beijo e o abraço
o prazer em que
se cumprem
e o gosto do recomeço”
Num encontro chocante, à primeira vista, entre o poder da poesia e uma das narrativas mais identificadas do Cristianismo – o anúncio do Arcanjo Gabriel a Maria sobre o nascimento de Jesus Cristo – Maria Teresa Horta, reconhecida pelo uso da palavra de forma a colocar a figura feminina em ponto de igualdade com a masculina, dá a conhecer em “Anunciações” (Dom Quixote, 2016) um novo ponto de vista sobre estas duas personagens. Um livro que vai de encontro não só à desobediência tão presente em todos os livros da autora – não tivessem “As Novas Cartas Portuguesas”, escrito em conjunto com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, provocado um processo político na época em que foi lançado ou, ainda antes, “Minha Senhora de Mim” provocado tão burburinho na época de publicação –, mas a uma beleza extrema, em que o deslumbramento e sedução habitam em cada poema.
As surpresas começam na identificação destas “Anunciações” como um romance. Há uma condução rítmica e lógica nos poemas de Maria Teresa Horta, divididos por catorze estações – tal como as que dão conta da paixão e morte de Cristo. Se os anjos habitaram desde sempre na obra da escritora, numa denotação clara de uma infância criada numa religiosidade extrema, o Arcanjo Gabriel é, provavelmente, a figura mais marcante de todos os anjos presentes na sua obra literária. Num momento em que se sente, com cada vez mais força, uma onda de revolução na Igreja Católica, graças a todas as mudanças trazidas pelo actual Papa Francisco e com o Prémio Pessoa 2016 a ter sido atribuído a Frederico Lourenço – que trará a maior tradução da Bíblia a partir do grego antigo -, estas “Anunciações” vêm colocar mais um dedo na ferida dos mais cépticos à mudança.
O Arcanjo Gabriel, com as “plantas brancas e geladas dos pés” de tanto voar, e a jovem Maria, que se encontra inclinada sobre o seu livro, deixam-se levar pelo deslumbramento mútuo. Anunciador da boa nova do Senhor, para revelar a Maria que carregará o Seu filho no ventre, Gabriel acaba por se deixar cair em vertigem por esta mulher, imposta pelos dogmas como a mais pura. Num tom mais suave, a característica de sedução – presente em todos os livros da escritora – não deixa de estar presente nestas “Anunciações”. É a atracção entre estas duas personagens que as torna magnificamente humanas. Maria é dona das suas próprias ações, uma mulher com as escolhas e vontades (“- Podes desejar-me/ amar-me/ e obedeceres ao teu Deus?/ Quer saber Maria/ sem temer a inquietude/ que nela se reiventa/ na teima de desvendar/ em si mesma os tantos/ sentimentos armadilhados”), numa lembrança das causas que levam a escritora a defender o feminismo – na ideia clara de que mulheres e homens devem ter o mesmo peso na sociedade.
Apesar da relevância desta paixão, alimentada e concentrada nas catorze estações do livro, há momentos de questionamento dos dogmas, fundamentais ao leitor, que tornam esta obra de Maria Teresa Horta numa das mais belas da sua carreira: a castidade de Maria (“Fantasia desavinda/ a tapar o resguardo/ de uma pureza ilusória/ A iludir a entrega do teu corpo apaixonado”) ou a tentação da serpente (“Com Maria/ falou a serpente/ muito baixo/ à revelia do anjo”). Um questionamento cercado nas palavras de sedução que vão de encontro à definição de pecado imposta pelas instituições religiosas, à enumeração das dores e combates que o Arcanjo tem de travar pela mulher que deseja, em cenários em que este ser alado se transfigura num humano banal e, nesta consequência, não existe qualquer tipo de compreensão ou compaixão divina.
“Anunciações” é um dos mais belos livros de poesia publicados recentemente. Coloca uma das questões mais comentadas pela humanidade, ao longo dos tempos, em cima da mesa de uma forma tão natural e humana: a vontade de Maria através da sedução, encantamento e amor por Gabriel. A força das suas decisões na visão de estarem só os dois nos poemas, sem a entrada de outras personagens conhecidas nas histórias de cada um – como é o caso de José, na vida da Virgem Maria. Estão os dois envoltos na asfixia provocada pela sua paixão, no rebuliço dos mais profundos sentimentos, ao virar de cada página.
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