“Andanças com Heródoto” (Livros do Brasil, 2020) inicia com uma referência à grande figura da História Grega, Heródoto, que nos deixou o livro Histórias. Actualmente, a obra do historiador é reconhecida como inovadora, pois rompe com a tradição literária das crónicas. Amplia o conceito de história, relaciona-o com a etnografia e a antropologia.
Ryszard Kapuściński ouviu falar pela primeira vez em Heródoto no início da década de 50, durante o curso de História da Universidade de Varsóvia. Surpreendentemente, o livro de Heródoto, escrito há mais de dois mil e quinhentos anos, voltou a entrar na sua vida quando a chefe do jornal o chamou ao seu gabinete e disse: “Vamos enviar-te à Índia”. Desde então nunca mais saiu da sua vida, tendo-o acompanhado durante toda a sua existência.
A primeira viagem é uma memória difícil de se apagar, um marco na vida, como se pode comprovar pela narrativa do jovem e inexperiente jornalista polaco que nunca tinha atravessado a fronteira. Tudo começa sem grande preparação e apoio, mas com muita inquietação.
Num tom autobiográfico, Ryszard Kapuściński partilha algumas das suas viagens, nomeadamente a primeira que fez de avião e que terá sido inesquecível. Quem poderá ignorar o espanto de ver, pela primeira vez, da janela de um avião, uma cidade iluminada? “As poucas cidades e vilas que tinha conhecido até então eram lúgubres e escuras, sem montras de lojas iluminadas, sem publicidade multicolor e, ainda por cima, os escassos candeeiros de rua tinham lâmpadas fraquinhas”.
Kapuściński narra-nos de forma apaixonada a sua vivência como jovem jornalista, inexperiente, acabado de chegar à India. “O verdadeiro choque de civilizações aconteceu uma hora mais tarde quando saí do hotel. Do outro lado da rua, numa pequena e estreita praça, começaram a reunir-se os condutores de riquexós, homens encurvados com os ossos e as velas bem visíveis. (…) Eu não podia sequer suportar o pensamento comodamente num riquexó, puxado por um esqueleto humano esfomeado e fraco. A ideia provoca-me raiva, angústia e indignação. Ser explorador, aproveitar-me da miséria de outro?”. Esta foi a primeira de muitas angústias. A pobreza e qualquer tipo de opressão não são naturais, aos jornalistas cabe o papel de esclarecer, elucidar, dar a conhecer ao mundo tais situações. Kapuściński compreendeu o seu papel de repórter: não bastava descrever, era necessário edificar conexões, referenciar os contextos. Foi na Índia que tomou consciência desta aprendizagem para a vida. A Índia deixou-o complementarmente aturdido. Cresceu a vontade de fugir deste país, em tudo diferente do seu, mas tal não aconteceu. As informações e o conhecimento da Índia eram muitos escassos, os obstáculos da língua e o seu inglês era debilitado. Condenado a permanecer na Índia, devido à guerra do Suez, rapidamente entendeu que cultura e língua eram sinergias indissociáveis, e que a sua salvação residia na aprendizagem da língua. O domínio do idioma permitia não só comunicar mas, essencialmente, compreender os costumes, os modos de agir, as castas, as divindades, os mercados, as desigualdades. Os dias na Índia não eram só a descoberta de um país, mas fundamentalmente de um outro mundo.
“Andanças com Heródoto” cruza brilhantemente o jornalismo com a literatura. Às viagens são adicionadas geografias geopolíticas, costumes, olhares, emoções e muitas leituras, nunca menosprezando o livro de Heródoto. Se as viagens ampliam o conhecimento, os livros são transformadores, e prova disso é a confissão de Kapuscinski: “Mesmo se, durante anos, não abrisse o livro, não esquecia o autor”, com quem aprendeu a avidez do conhecimento, a curiosidade, a inquietude, a descoberta de mapa-múndi, as fronteiras do espaço e do tempo e o amor às viagens como forma de conhecer a vida, o mundo e a si próprio. O jovem repórter Ryszard Kapuściński concretiza o desejo de partilhar com os outros o máximo daquilo que aprendeu e viveu, tornando-se num dos mais viajados jornalista polacos do século XX, escrevendo sobre dezenas de revoluções, guerras, batalhas, países, cidades, e pessoas. Muitas pessoas.
Ryszard Kapuscinski nasceu em 1932 na cidade polaca de Pinsk, hoje situada na Bielorrússia. Estudou História na Universidade de Varsóvia e, em 1955, começou a trabalhar como jornalista, escrevendo reportagens sobre a reconstrução da Polónia. Ainda nos anos cinquenta, foi pela primeira vez enviado como correspondente para a Ásia (Índia, Paquistão, Afeganistão) e para o Médio Oriente. Mais tarde, passou longos anos como correspondente em África e na América Latina. Considerado um dos grandes mestres do jornalismo moderno, Kapuscinski foi eleito em 1999 o melhor jornalista polaco do século XX e distinguido, em 2003, com o Prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades. Em 2004 foi galardoado na Áustria com o Prémio «Bruno Kreisky para livros políticos». Em 2005 foi doutorado “honoris causa” pela universidade catalã Ramón Llull. Faleceu em 2007.
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