“Ao deixar Londres, Phileas Fogg não fazia ideia da grande repercussão que a sua partida iria provocar. A notícia da aposta espalhou-se a princípio no Reform Club, e produziu uma verdadeira comoção entre os membros do respeitável círculo. Depois, do clube, esta comoção passou para os jornais, por intermédio dos repórteres, e dos jornais ao público de Londres e de todo o Reino Unido.”
Júlio Verne é conhecido pelas dezenas de obras que escreveu, mas não há nenhuma capaz de se igualar a “A Volta Ao Mundo em Oitenta Dias” (Guerra & Paz, 2016). Uma obra de literatura clássica e cada vez mais intemporal – as obras de Verne são as mais traduzidas depois das de Agatha Christie e, provavelmente, este livro é um dos mais adaptados a diferentes filmes e séries televisivas – não poderia ser uma ausência na coleção de grandes clássicos internacionais da editora. Com a análise atenta ao clássico português “O Que Fazem As Mulheres”, de Camilo Castelo Branco, e ao arrebatador “O Amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence, chega a altura de embarcar na viagem planeada por “um dos membros mais singulares do Reform Club”, o inglês Phileas Fogg, e o seu criado francês, Jean Passepartout, em 1872.
Provavelmente será necessário recuar às origens de Verne para se compreender a génese desta obra. Com apenas 11 anos, e tão perto do oceano por viver na zona portuária de Nantes, fugiu de casa para se tornar marinheiro. Uma experiência de curta duração mas denunciadora da paixão por aventura. Helder Guégues, o tradutor desta bela edição lançada pela Guerra & Paz, afirma que o autor navegava nos seus iates – Saint-Michael II e Saint-Michael III – mesmo quando já vivia da escrita e, nos seus enredos, colocava toda a “sedução da velocidade, o gosto pela aventura, a fé na ciência”. Em pleno século XIX, Verne tornou-se num pioneiro do “romance de antecipação científica” e colocou o olhar do “europeu com os povos de outras paragens”. Uma lição de antropologia e, para o leitor actual, uma leitura histórica.
Numa era cada vez mais digital, em que novos escritores podem dividir um enredo e colocá-lo numa só plataforma digital, “A Volta Ao Mundo Em Oitenta Dias” foi publicado em folhetins. Ao contrário das possibilidades que são oferecidas hoje em dia e da liberdade criativa dos escritores, as histórias de aventura – escritas para todos os leitores com o mínimo grau de alfabetização – eram escassas. Provavelmente será este um dos motivos para a escrita de Verne ser tão despojada e tão simples, que acaba por dar vontade de orná-la “com o que parece que lhe falta”, segundo Guégués. Como seria de esperar, esta obra está de tal forma estruturada para o formato de folhetim que o final de cada capítulo é empolgante.
Não há homens do calibre de Phileas Fogg. Com uma pontualidade e rigidez absoluta, todos os dias acorda às 8h00, faz a barba às 9h37 e sai em direcção ao Reform Club para colocar a leitura de jornais em dia. Nenhuma notícia lhe escapa, nenhuma novidade fica por saber. É uma dessas novidades – um furto no Banco de Inglaterra, a 29 de setembro, noticiado pelo Morning Chronicle – que se torna propícia à aposta feita por este inglês com os seus amigos do clube. Os palpites são feitos a favor do ladrão, uma vez que a Terra “diminuiu”. Este encolhimento deve-se à capacidade do ser humano percorrê-la dez vez mais depressa e, concluídos os cálculos, em apenas oitenta dias. Um número que deixa a maioria dos membros incrédula e leva Fogg a apostar na concretização bem-sucedida desta viagem. Com o recém-contratado criado, embarcam numa aventura por todo o Mundo para vencer esta aposta.
“A Volta Ao Mundo Em Oitenta Dias” é provavelmente um dos mais belos e simples livros de acção alguma vez vistos. Contém os ingredientes fundamentais para uma excelente aventura: dois protagonistas, com personalidades distintas, que partem para a aventura, e uma espécie de “vilão” que atrapalha os dois cavalheiros na sua jornada. Todos os outros adereços – personagens que acabam por ficar no caminho de Fogg e Passepartout – acabam por enriquecer o enredo. Esta tão aclamada obra de Verne vem provar que os clássicos merecem ser lidos por todas as gerações. Pode não estar na lista dos mais vendidos, mas deve fazer parte dos hábitos de leitura de qualquer iniciante no universo literário.
Em 1873, ainda em fase de publicação em folhetim, os correspondentes dos principais jornais europeus e americanos em Paris acompanhavam as aventuras de Phileas Fogg como se fosse alguém real, fazendo questionar sobre o poder da literatura ao longo dos diferentes séculos. A emoção com que a história foi recebida fez com que companhias de navegação oferecessem fortunas a Verne para colocar o seu protagonista a viajar num dos seus navios. Não há melhor livro para ler na praia, ao som das ondas. Até é provável que encontre, ao fundo, o jovem Passepourt e Fogg na sua derradeira viagem de oitenta dias.
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