“A Vingança é Minha” (Alfaguara, 2024), romance de Marie NDiaye, tem uma aura de mistério e o ritmo de um thriller psicológico, explorando largamente a ambiguidade e a complexidade das relações humanas, na extensão de várias personagens que a própria protagonista encerra em si – e talvez resida, aí, o maior enigma deste enredo.
Dr.ª Susane é uma advogada de 42 anos, residente em Bordéus, procurada por Gilles Principaux para defender a sua esposa, Marlyne, acusada de assassinar os três filhos do casal. O crime e a sua decadência grotesca, juntamente com o encontro inesperado, despertam em Susane memórias difusas de um possível passado comum com Gilles, levando-a a questionar a sua própria história e identidade e fazendo cessar a harmonia e a franqueza (aparentes) que reinavam na sua vida.
Há, desde o início, uma estranheza sobre os contornos da identidade e da história pessoal e famíliar da Dr.ª Susane, uma suspeita de que algo sombrio a persegue, na ânsia de ser salva por alguma contingência externa que lhe permita mergulhar em outras vidas que não a sua.
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Em entrevista, NDiaye enfatizou que aprecia a ambiguidade da ficção, resistindo a interpretações simplistas das suas personagens e rejeitando a ideia de que estas sejam meramente vítimas de dominação. Disse também não ter a intenção de tratar os seus romances como manifestos, preferindo deixar espaço para múltiplas interpretações, algo que é uma realidade neste romance, onde as peças parecem não encaixar umas nas outras. É, antes, a ilusão da memória que serve de guia a um presente nebuloso.
Embora o enredo avance rodeado de incertezas, há uma segurança em certas descrições que catapultam o leitor para emoções firmes, algo que é feito pela autora de forma brilhante. A atmosfera adensa-se a partir da frieza e da densidade psicológica, propulsionada por uma inquietação central que retrata uma mulher a braços com os seus paradoxos existenciais. Um romance sobre a memória e o trauma, as heranças familiares e profissionais, a ambiguidade psicológica e a complexidade que constituem a identidade.
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