“Sabem os nobres senhores reconhecer um tempo como histórico? É quando muita coisa acontece, e acontece muito depressa.”
O início da década de 1420 é, sem dúvida, uma época histórica marcada por conflitos políticos e religiosos em quase toda a Europa, ao ponto de alguns profetas terem lá situado a data do apocalipse – o qual, obviamente, não aconteceu, a não ser para as muitas vítimas desses tempos tumultuosos.
É neste contexto que decorre “A Torre dos Loucos” (Saída de Emergência, 2022), o mais recente livro de Andrzej Sapkowski – celebrizado pela saga “The Witcher” –, que dá início à Trilogia Hussita. Mas não receiem os fãs do autor polaco que a fantasia tenha sido suplantada pela seriedade da História: embora a intriga seja enquadrada em factos reais, o sobrenatural é quase tão omnipresente quanto o humor negro de Sapkowski, não faltando aqui criaturas monstruosas, bruxas, profecias e várias ocasiões para recorrer à feitiçaria.
O protagonista é Reinmar de Bielau, conhecido como Reynevan, um jovem de 23 anos que se desvia do estudo da medicina para se entregar à paixão pela bela e fogosa Adèle. Infelizmente, embora o esposo da beldade tenha partido numa cruzada contra os hereges hussitas – seguidores das ideias do teólogo reformador Jan Huss –, os seus irmãos surpreendem o par em flagrante delito de adultério. Reynevan é obrigado a fugir para salvar a pele, iniciando uma viagem por um território que hoje se divide entre a Alemanha, a Chéquia e a Polónia, metendo-se constantemente em apuros, enredando-se em teias de interesses antagónicos e cruzando-se com uma galeria notável de figuras secundárias, entre as quais se conta um novo interesse romântico: uma bela e destemida amazona que lhe salva a vida e cuja recordação começa a confundir-se com a da sua amada Adèle.
Existe algo quixotesco na concepção romântica que Reynevan tem de si próprio, bem como nas suas demonstrações de nobreza e heroísmo, as quais tendem a ter consequências desastrosas. Para sua própria segurança, uma vez que se vê perseguido por “canalhas amorais despidos de qualquer noção de honra ou de fé”, é-lhe imposto um companheiro de viagem cuja moral inicialmente lhe causa aversão, mas de quem acaba por se tornar amigo. O par transforma-se num trio, quando o exorcismo rocambolesco em que se envolve produz o efeito secundário de colocar um espírito errante no corpo abrutalhado de um débil mental – adoptando o nome de Sansão, este passa a segui-los, na esperança de que encontrem uma forma de libertá-lo daquele corpo indesejado.
As andanças de Reynevan ganham uma nova motivação com a morte brutal do irmão, associada a uma série de homicídios misteriosos de homens de posses com ligações aos hereges. Neste ambiente de perseguição religiosa brutal ergue-se Narrenturm, a Torre dos Loucos, onde a Santa Inquisição encerra também aqueles que a desafiam, e onde Reynevan será aprisionado. Apesar de ocupar um número relativamente pequeno de páginas, a passagem pela torre assinala um ponto de viragem na história, que se repercutirá no próximo volume.
É difícil prever que novas aventuras viverá Reynevan, mas é garantido que certos elementos continuarão presentes: amizade e traição, amor e morte, política e religião, muita acção, e o humor mordaz do narrador a brilhar acima de tudo.
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