O conceito de não-ficção crime, atribuída (erroneamente) a Truman Capote (que não estava a inventar nada de novo, como afirmava, pese ser pioneiro) com o seu “A Sangue Frio” (Dom Quixote, 2016 – reedição), é, no mínimo, peculiar. A não-ficção, duplamente, não desmente os elementos fabulados da obra, que os há, mas também assume sempre uma postura aproximada do código deontológico de um jornalista, que é ser uma descrição fidedigna, expondo a verdade dos acontecimentos. Porém, a não-ficção está longe de um nem carne, nem peixe. É um género que se assume como factual, não recorre a pseudónimos para os seus protagonistas e antagonistas, que, ao jeito de Capote, trocam várias vezes de posição. Ao mesmo tempo: é um romance.
Os quatro membros da família Clutter são assassinados na pequena comunidade agrícola (e profundamente religiosa) de Holcomb, no Kansas. Sendo que os Clutter simbolizavam uma das várias vertentes do Sonho Americano, a sua morte cruel rapidamente se propagou pelas notícias. Truman Capote, movido por um fascínio que só o potencial de um grande romance por escrever pode sugerir, segue com Harper Lee para o Kansas, de modo a investigar o sucedido. Entretanto, aquando das pesquisas, é capturada a dupla responsável pelo quadruplo homicídio: Richard Hickock e Perry Smith. Nos seis anos que se seguem, até a execução dos condenados, Capote desenvolve uma relação cordial com os arguidos, de onde extrai informação vital e forma o perfil psicológico de um assassino, oferecendo um retrato humano de um ser capaz de atrocidades, nomeadamente Smith.
Pondo de parte qualquer embelezamento literário de Capote (quem quiser confirmar a verosimilhança entre o desfecho do livro e as declarações factuais de Dewey, detective de serviço, irá descobrir que Capote deu largas à imaginação, pautado pela sensibilidade literária aguçada, mas que, ainda assim, não deixa de ser fantasiosa. Contudo, há aí alguma magia, no labor criativo de Capote, à procura do tal grande romance americano. Por mais que o autor tenha acusado os críticos de “A Sangue Frio” de terem ciúmes do seu sucesso, a única certeza é que não olhou a meios para concluir a obra, da forma mais magnânima que esta podia ganhar forma. “A Sangue Frio” não é um acumular de factos, dos acontecimentos de Holcomb, mas antes a versão romanesca de Capote sobre esses acontecimentos. Esperar que um turbilhão literário, amoral, na sua demanda para ficar no panteão, se refreasse nos limites da factualidade, seria ingenuidade.
E nisto, desde que não se procure verosimilhança histórica (casos destes que, tristemente, nos dias de hoje, estão banalizados na comunicação social), “A Sangue Frio” é gratificante. No que diz respeito à ordem dos eventos, ao leitor dos dias hoje é fácil construir-se à semelhança dos relatos, ritmos e cortes dos melhores documentários que temos assistido nos últimos anos. Digamos que, sem “A Sangue Frio”, “Making a Murderer” – o colosso da Netflix sobre a alegada inocência de Steven Avery – dificilmente existia como o conhecemos. Esse contributo indirecto de Capote, de natureza pluridisciplinar, é, de facto, lauratório. Ficar-lhe-ia bem o Pulitzer que almejava, que sentia que era seu aquando da escrita do romance, que lhe fugiu, ao contrário do sucesso – esse ficou para aquilo que chamamos eternidade, com direito a meio termo de distância dada a incerteza dos tempos. Passaram-se 50 anos, venham mais 50 com leitores.
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