Numa aldeia da Estónia Ocidental, a idosa Aliide Truu leva uma existência pacata, ouvindo rádio e fabricando conservas de fruta, cogumelos e legumes. Corre o ano de 1992. O país recuperou recentemente a independência, na sequência da desagregação da União Soviética, e quase toda a população – incluindo a filha de Aliide – migrou para as grandes cidades, deixando para trás alguns velhos e bandos de jovens desordeiros. Eis que, no final de um dia de Verão, o quotidiano de Aliide é abalado pela descoberta de uma rapariga desconhecida, a dormir sob uma bétula perto da sua casa. A jovem está coberta de lama, veste roupa requintada esfarrapada, e tem apenas uma lanterna e um mapa a seu lado. Quando desperta, apresenta-se como Zara, falando estónio com entoação russa, com frases antiquadas, vindas de “um mundo de papéis velhos e de álbuns bolorentos já sem fotografias”, com as quais conta uma série de mentiras. Porém, Aliide não é ingénua e guarda os seus próprios segredos, que a levam até a tentar ignorar a revelação do laço familiar que as une.
A dinâmica entre estas duas mulheres é o cerne de “A Purga” (Alfaguara, 2022 – reedição), sendo fácil entrever neste romance a peça de teatro que o originou. A autora de ambas as obras, Sofi Oksanen, distinguida com o Prémio Femina, o Prémio Europeu de Melhor Romance e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, revela aqui o seu brilhantismo a vários níveis, desde a cuidada composição psicológica de duas protagonistas complexas, até ao cruzamento de cronologias e percursos de vida, sempre com uma linguagem cristalina, mesmo quando são abordados temas difíceis como a brutalidade da ocupação soviética, o tráfico humano da era contemporânea e a persistente violência sexual contra as mulheres.
Durante um ano, Zara passou por experiências que a fizeram esquecer-se “de todas as coisas relacionadas com o convívio normal entre pessoas”. Junto de Aliide, procura comportar-se como em tempos, num outro mundo ao qual sente que já não pertence, mas a sua tentativa de fuga ao passado esbarra nos mistérios da velha senhora. Esta percebe que a jovem mente, mas a autenticidade do seu terror desperta memórias de um medo antigo. Através da reconstituição do passado de Aliide, descobrimos não só a sua história, mas também a de outras personagens e até a do seu país.
Entre sequências de capítulos curtos, escritos sob a perspectiva de cada uma das protagonistas, surgem excertos do diário de um camponês estónio nacionalista que desempenhou um papel decisivo na vida de ambas. No final do livro, encontramos ainda uma compilação de documentos classificados como altamente confidenciais, cujo conteúdo lança uma ironia terrível sobre o drama de Aliide, adicionando novas camadas aos jogos de enganos em que se envolveu. Entre as convulsões da História, há um caso de amor obsessivo, ciúme e traição. Há a dor da humilhação perante o despotismo daqueles que sabem que ninguém se pode opor à sua vontade. Há, por fim, a tristeza de “uma vida desperdiçada pelo medo diário” e uma oportunidade de redenção, nesta obra magistral que o leitor dificilmente esquecerá.
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