O que leva uma pessoa a afastar-se radicalmente dos valores que presidiram à sua educação desde tenra idade? Um amor? Um novo ideal? O desejo de trocar uma realidade asfixiante pela luta por um sonho? No caso de Annie Silva Pais – a filha do último director da PIDE, que abandonou o marido e a vida burguesa para se entregar à revolução comunista cubana –, cada uma dessas explicações é aplicável, embora se afigure mais correcto acreditar na conjugação de todas elas, como nos leva a crer Ana Cristina Silva em “À Procura da Manhã Clara” (Bertrand Editora, 2022) .
Este romance biográfico é construído a partir de cartas nunca enviadas, escritas pela protagonista e guardadas no seu apartamento em Havana, numa caixa de sapatos, até à data da sua morte. Destinadas aos pais, a amores e amigos, estes textos ficcionados precedem cada capítulo, abrindo vias de acesso a várias etapas da sua vida, bem como aos pontos de vista de outras personagens.
As memórias da infância e da adolescência de Annie revelam um espírito rebelde, contestatário dos valores apregoados pela mãe – uma dama exemplar do Estado Novo – quanto à ordem social em geral e ao papel da mulher em particular. Com o pai, que a protege das constantes censuras maternas, a relação é muito mais afectuosa, sendo assim lançados os alicerces do “labirinto moral” de sentimentos em que se encontrarão mais tarde, como adeptos de ideologias antagónicas.
Os homens da sua vida serão sempre amados, em parte, pelo potencial de mudança que representam. O casamento com um diplomata suíço será algo de que se arrependerá, mas permite-lhe libertar-se da tutela familiar e sair de um Portugal marcado pela repressão das ideias e dos costumes. Devido à colocação do marido em Cuba, assiste à vitória dos guerrilheiros sobre uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos da América e apaixona-se pelo carismático Che Guevara.
Através de novas amizades, mergulha “no universo da revolução como se fosse outro mundo, um mundo apaixonante em que as regras que conhecera até então não se aplicavam”, e que alimenta esperanças de concretização de utopias de justiça e igualdade para todos os povos.
Enquanto a sua passagem para o lado dos comunistas desencadeia um pequeno escândalo em Portugal, abafado devido às suas ligações familiares, Annie empenha-se na revolução, embora nunca abdique totalmente de prazeres que muitos dos seus camaradas considerariam certamente “luxos burgueses”. Ascenderá até se tornar tradutora da diplomacia do regime, e voltará a Portugal para acompanhar o desenvolvimento da revolução de 25 de Abril de 1974, chegando a viver o Verão Quente de 1975. Após a prisão do pai tentará defendê-lo, sempre dividida entre o afecto e o conhecimento das práticas da polícia política.
Com uma escrita sempre belíssima, a autora conduz-nos através de períodos conturbados da História recente, reconstituindo com grande sensibilidade os meandros da mente de uma mulher excepcional, cuja vida repleta de amores e desencontros parece transcender a realidade.
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