Quando um livro separa leitores, entre aqueles que são team pediatra e os que não o são, sabemos logo que será leitura capaz de despertar os sentidos e de mexer com as nossas emoções. É isso mesmo que Andrea del Fuego consegue com este “A Pediatra” (Companhia das Letras, 2022).
“Marido infeliz mina até um jequitibá. Eu jogava na cara dele a rigidez das minhas articulações, uma fibromialgia se instalava por sua culpa. (…) os tratamentos para a depressão surtiam efeito no início. No começo eu me animava, quando ele voltava ao lodo, eu me alongava na rua, do consultório ia para o supermercado comprar congelado e planta, chegava com ele já dopado no quarto.“
É mais ou menos assim que Cecília, a pediatra, é introduzida aos olhos do leitor. Ela é despudorada, desconcertante e irónica. Algumas vezes mal educada. Sempre calculista. Segura e em segurança.
“Inaceitável que uma legião não estivesse espetando minha densidade de sobremesa, seio que criança nenhuma pisoteou até murchar, vagina nulípara, nunca posta à prova, músculo rosa, mucosa vítrea como maçã de quermesse, eu permanecia inédita.“
Com uma “densidade de sobremesa” contorna o marido, enquanto satisfaz caprichos que a deixam “esfolada” mas leve e, tendo leveza, ela é ainda mais a mulher que quer ser: altiva, dona do seu destino e sem ninguém a atrapalhá-la. Nem Celso, o amante grudado no sentimentalismo, nem Jaime ou Mãe Prana, puxando da hipnose e do holístico, conseguem manchar o protocolo que tão bem a separa de crises e das doenças que atende. Embora, dentro de casa, existam alterações e “gastaduras” que ousam perturbar o aprumo do seu céu engomado.
“A vantagem da medicina é poder ser quem quiser, santa desonesta, anarquista, patriota, bipolar, batista ou ateia, penso e sinto o que eu quiser com estetoscópio no pescoço, quem trata não sou eu, é o protocolo, apenas seguir o roteiro da observação clínica (…) desvio da gravidade (…) filtro a exuberância dos sintomas que as mães revelam dos filhos e despacho. Atendo com jaleco alvejado, cabelo limpo, volto para minha casa sem alteração que tenha ousado nascer no consultório, corto minha gastura de doença com um banho.“
Com Deise, o pai, e mais ainda com Bruninho, descobrimos nuances, como nuvens que vêm emparedar o azul e, perante alguns acontecimentos, a pediatra assusta-se e assume o medo, sensações desconhecidas que a deixam pesada como um “balão de aniversário que perde leveza e o voo”. Mas, mesmo nos momentos em que se sente entorpecida, voa baixinho com “intenções salubres”, esperando o momento em que os que a rodeiam, alheados, esperam “secar o cimento mole onde entraram até o joelho”.
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