Reza a história – e a nota biográfica – que, na sua adolescência, Mariana Enriquez foi “leitora de Stephen King, das irmãs Brontë, de Ray Bradbury ou de escritores de terror avulsos e surripiados entre livros usados – além das histórias de fantasmas contadas pela avó, cheias de religiosidade à mistura com superstições e criaturas assustadoras“. Uma herança e percurso literários que atravessaram, de uma ponta à outra, “As coisas que perdemos no fogo” o primeiro livro da autora a chegar às livrarias nacionais em tradução – estávamos então em 2017 -, uma colectânea de contos para serem lidos – e cantados – como um hino ao grotesco, ao macabro e à loucura, na qual Mariana passeava entre ruínas de salto alto e facas afiadas.
“A Nossa Parte da Noite” (Quetzal, 2020), o seu primeiro romance, alimenta um ambiente claustrofóbico, negro, horrendo e intenso, num estilo de escrita único onde está presente a ideia de redefinição de vida e morte, marcado pela inquietude, a irreverência, a frialdade e uma sombra poética. Nele, voltamos a reencontrar a presença de fantasmas, o despontar da homossexualidade, a consciência algo amoral de classe ou uma banda-sonora para a adolescência, sempre com o terror na mira e a infiltrar-se gota a gota na corrente sanguínea.
Em tempos de ditadura militar, um pai e um filho atravessam a Argentina de carro, procurando escapar a um destino escolhido por forças alheias a que parece ser impossível escapar. Tal como o pai, a Gaspar está destinado o papel de médium numa sociedade secreta, conhecida como a Ordem, uma entidade com séculos de existência que procura alcançar a vida eterna, dominada pela poderosa família da mãe de Gaspar – que morreu em circunstâncias pouco claras.
A missão a que Juan se entrega é a de esconder o filho, não lhe revelando o imenso poder que encerra, aproveitando esse tempo para o criar e arranjar uma forma de derrotar a Ordem. É esta relação cortante entre pai e filho, feita de amor reprimido, violência brutal e segredos amarrados a pedras, que antecede a idade adulta e a descoberta da verdade, que irá levar Gaspar a lugares habitados por monstros, a interiores de casas que escondem buracos negros ou a liturgias sexuais marcadas pela violência, numa viagem que atravessa mares e dá também um pulo à Londres psicadélica dos anos sessenta, oferecendo uma pluralidade de vozes narrativas, ambientes e épocas, que fazem deste um romance gótico de espírito épico.
Sempre com a ditadura militar e todos os seus sobreviventes, desaparecidos e mortos como pano de fundo, Mariana Enriquez move-se entre a dor, a anestesia e o medo, cruzando o real e o imaginário, mostrando como a mente humana encontra, no meio dos escombros, formas de superar o mal, transformando-o em algo onde até mesmo um coração exausto pode, com o tempo, descobrir – se não o amor – pelo menos o silêncio. Cinco estrelas.
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