“Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam. (…) Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.”
Os capítulos numeram-se de forma decrescente — do 12º ao primeiro —, como que numa contagem para gritar “A Nossa Alegria Chegou” (Companhia das Letras, 2018), título do quarto romance da escritora Alexandra Lucas Coelho, o primeiro original publicado com Companhia das Letras que está também a relançar as suas outras obras.
Neste que é o seu décimo livro, e quando estamos habituados a que nos traga retratos de lugares como Israel, Palestina, Afeganistão, México ou Brasil nos seus livros de “reportagem-crónica-viagem”, a autora surpreende com um romance passado num local imaginário, Alendabar, criando pela primeira vez um universo ficcional próprio: um lugar com a sua fauna, flora e o que sobra de uma língua perdida.
Considerado pela autora “uma espécie de conto infantil para adultos”, o romance promete uma revolução em doze horas, numa luta contra um rei opressor. A premissa parte de um pacto estabelecido entre três jovens amigos — Ira, Ossi e Aurora — para fazer uma revolução em Alendabar, no primeiro dia de Outono. Nesse mesmo dia, uma mulher do outro lado do mundo chega a Alendabar com as cinzas do marido, trazendo o filho de ambos. Também nesse dia, o dono de todas as terras em volta, conhecido como Rei, recebe um convidado do Oriente, um guru da tecnologia. O destino de todos vai cruzar-se ao longo das doze horas de luz deste equinócio.
Aqui há deuses antigos, servos, pirâmides, histórias de monstros e demónios, mas também temas contemporâneos como a poluição, a destruição do planeta e a inteligência artificial, abordados em jeito de crítica. Neste tempo e espaço vagos, “a alegria é a revolução”, expressa numa linguagem que exalta os sentidos, plena de musicalidade, bastante descritiva e com doses de erotismo.
A estrutura narrativa, assente em doze capítulos, revela-se um incentivo à leitura, mas os capítulos altamente fragmentados, compostos por vários episódios com diferentes perspectivas das personagens – grande parte com não mais de uma página -, trazem um sentimento agridoce: o que se ganha em diversidade de perspectivas perde-se em fluidez de leitura, numa alternância que exige atenção e limita o desenvolvimento da história.
A história de “A Nossa Alegria Chegou” é, porém, mais complexa e real do que aparenta, isto quando nos permitimos a ler nas entrelinhas, a deixar-nos levar por uma comunidade inventada mas em tantos aspectos idêntica à nossa, a quem por vezes falta o lado combativo, de resistência e de luta aqui presentes.
“O mal de toda a parte está em Alendabar, o mal de Alendabar está em toda a parte. Mas Ira, Ossi e Aurora acreditam que o bem está na luta.”
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